terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Ele dormiu com Joey Ramone


O livro nem é tão novo assim. Foi publicado pela primeira vez em 2009 nos Estados Unidos. Mas esperei um bom tempo achando que a obra seria lançada no Brasil, mas nada. Vai ver as editoras estavam e estão ocupadas demais lançando biografias interessantes de subcelebridades como Jeisi Arruda, enquanto essa ótima história sobre a vida do cantor dos Ramones aguarda na fila até que algum editor se dê conta que está perdendo dinheiro.

Como isso não aconteceu até agora, o jeito foi importar um exemplar de “I Slept with Joey Ramone: a family memoir” (Eu Dormi com Joey Ramone: uma memória de família). Ao contrário do que possa parecer pelo título, não se trata de um livro escrito por alguma groupie ou ex-namorada do cantor, mas sim pelo irmão de Joey, Mickey Leigh, que contou com a ajuda do jornalista Legs McNeil, autor da bíblia punk “Mate-Me Por Favor”, para produzir as 400 páginas dessa biografia, lançada pela Editora Touchstone.

Joey Ramone é o nome artístico de Jeffrey Hyman (ou simplesmente Jeff, para os familiares), que se tornou mundialmente famoso cantando na pioneira banda punk estadunidense Ramones, de 1974 a 1996. Joey Ramone morreu em 2001, aos 49 anos, vítima de câncer linfático contra o qual lutou durante sete anos.

Mickey Leigh, irmão caçula de Joey, se propôs em “I Slept...” a abrir o álbum de recordações da família Hyman para os fãs dos Ramones ao redor do mundo. Mas, não se engane. Não se trata de uma ovação em tempo integral ao irmão famoso. Pelo contrário, Mickey se esforça para traçar um perfil bastante sincero de Jeff Hyman e não do astro Joey Ramone. E isso permite que você descubra que o vocalista dos Ramones podia ser em um momento a pessoa mais generosa do mundo e, em outro, um filho da mãe completo. E quem melhor do que o irmão caçula para revelar isso?

Tendo dormido com Joey no mesmo quarto durante 20, Mickey discorre fácil sobre a infância e adolescência dos dois. As angústias com a separação dos pais, a morte do primeiro padrasto, as brincadeiras na vizinhança pacata de Forest Hills, em Nova York, a paixão pelo rock and roll que ambos cultivaram desde que ouviram no rádio a música La Bamba, de Richie Vallens , ainda na década de 50. E claro, também o perrengue pelo qual sempre passou a família Hyman, que se tornou ainda pior quando Joey, que desde bebê sempre teve saúde frágil, passou a manifestar sintomas do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), uma doença psicológica que o acompanhou por toda a vida, o qual faz a pessoa repetir infinitas vezes uma mesma ação sem uma explicação lógica para isso.

Devido ao TOC, aos 20 anos de vida Joey já era dado como um inválido, recebendo pensão do governo por ser incapaz de desenvolver qualquer trabalho que lhe garantisse o sustento. E seria assim até o fim da vida dele se o rock and roll não existisse. Por incrível que pareça, Joey e outros três desajustados novaiorquinos chamados Johnny, Dee Dee e Tommy formaram os Ramones, que se tornou uma das bandas mais importantes da história do rock. E Mickei Leigh, ele próprio um músico (sem sucesso), acompanhou de perto a ascensão do irmão “inválido” até se tornar um astro da música.

No livro, Mickey Leigh descreve como os dois tomaram rumos diferentes em suas vidas. Se alguém na família tinha alguma chance de se tornar um astro no mundo da música, esse alguém era o irmão mais novo: menos feio, melhor musicista, sem transtornos de qualquer tipo. Mas foi o irmão esquisito quem se deu bem. Apesar disso, Mickey e Joey se deram bem por um longo tempo, pelo menos até a década de 90, quando as brigas normais entre irmãos foram um pouco além do razoável.

No início dos anos 90, Mickey estava completamente ferrado financeiramente. Sua carreira como músico nunca decolou. Pobre, vendia maconha para os amigos para poder sobreviver e, inclusive, acabou preso por isso. Quando os Ramones fecharam um bom contrato com a cerveja Budweiser para usar a música “Blitzkrieg Bop” em uma propaganda de televisão, Mickey viu a oportunidade de ganhar algum dinheiro, o qual ele entendia ter algum direito, já que colaborou na gravação da música em 1976, embora nunca tenha recebido créditos e nenhum centavo por isso.

A investida de Mickey, além de não garantir um só dólar, criou um abismo enorme entre ele e Joey Ramone, que se estendeu durante todos os anos 90, intercalado apenas por reaproximações breves que sempre acabavam em novos e piores desentendimentos. Na biografia, em certos momentos se tem a impressão de que Mickey deixa transparecer um certo rancor ou inveja pelo sucesso irmão mais velho. Mas o autor tenta apagar essa impressão justificando que nunca quis ser um Ramone, mas que, claro, sonhava em ter uma banda de sucesso como The Who ou os Beatles, que sempre inspiraram os dois na adolescência quando ainda tocavam juntos no porão de casa.

Porém, o agravamento do câncer aproximou os irmãos meses antes da morte de Joey. Por um capricho do destino, Mickey estava junto dividindo o palco com o irmão em uma espelunca de Nova York em dezembro de 2000, naquela que acabou sendo a última apresentação do cantor dos Ramones, que na época se preparava para lançar o seu disco solo. Dias depois, após escorregar numa calçada e quebrar a bacia, Joey foi internado e começou a perder a sua batalha contra o câncer.

E não deve ter sido fácil para Mickey transpor para o livro toda aquela situação dramática de estar vendo o irmão se esvaindo aos poucos, até dar o último suspiro, segundos após ouvir a canção “In a Little While”, do U2, no início da manhã da segunda-feira de 15 de abril de 2001. “Ele se foi com a canção, eu pensei, para aquele lugar aonde as canções vão depois que elas são tocadas – onde quer que isso seja”, escreveu Mickey, evidentemente emocionado.

“I Slept With Joey Ramone” é um prato cheio para os fãs dos Ramones e amantes do rock em geral. Embora pipoquem em todos os cantos livros e documentários sobre a banda, é a primeira vez que a intimidade de Joey Ramone é tão exposta. Talvez Joey, sempre discreto com sua vida pessoal, não aprovasse o livro. Pelo menos, não da forma e com certos detalhes nele revelados (quem diria que Joey Ramone tivesse brigas de horas com sua mãe para poder usar a maquiagem e as roupas dela no auge do glam rock no início dos anos 70?).

Mas, acredito nas boas intenções de Mickey, que fora a bobagem de fazer alguns shows por aí hoje em dia cantando músicas dos Ramones em “tributo” ao irmão, convence os leitores que fez este livro com o coração.

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VEJA VÍDEO COM MICKEY LEIGH E LEGS McNEIL FALANDO SOBRE "I SLEPT WITH JOEY RAMONE"

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Meia Noite em Paris: uma lição sobre onde está a felicidade


Quem disse que Woddy Allen fez de “Meia-Noite em Paris” um dos melhores filmes de sua carreira, não estava errado. O filme foi lançado no comecinho do ano, mas para nós que moramos longe demais das capitais,na maioria das vezes o negócio é ter que aguardar e torcer para que o DVD chegue às locadoras. E “Meia Noite em Paris” valeu à pena esperar.

Temos que concordar que todo filme de Woody Allen é bem mais legal quando ele, além de dirigir, também atua, o que não é o caso aqui. Desta vez é o ator Owen Wilson, conhecido pelas comédias pastelão, que surpreende (esforçando-se para imitar os trejeitos de interpretação de Allen) no papel do protagonista. Ele interpreta Gil, um bem pago roteirista de cinema de Hollywood, mas que está frustrado pela futilidade de seu trabalho. O sonho de Gil é se tornar um escritor de livros respeitado.

Gil está em viagem a Paris com sua noiva Inês (Rachel McAdam) e os pais dela, que desaprovam o noivado. Inês é do tipo bonita e rica, mas ordinária, que mantém um interesse meramente catedrático por artes em geral. Muito diferente de Gil, que tem um espírito de artista, se assim posso dizer.

Enfim, para não entregar toda a história toda, digo apenas que de que forma surreal Gil embarca em uma inexplicável viagem no tempo e acaba, durante várias noites, conhecendo toda a famosa geração de artistas de 1920, que, conforme Hemingway registrou em famoso livro, fez de Paris uma festa.

Além do escritor autor de “O Velho e o Mar”, Gil conhece Scott Fitzgerald, T.S. Elliot, Picasso, Luis Buñuel, Gertrude Stein, Cole Porter, Salvador Dali, entre tantos outros. Para Gil, encontrar essas pessoas era a realização de um sonho! Afinal, era lá em Paris e naquela década que alguns dos artistas mais famosos do século XX estavam começando a entrar para a história.


Em “Meia-Noite em Paris”, Woody Allen trata de um tema que deve ser recorrente na vida de cada um de nós todos: a disposição nostálgica de imaginar que outros tempos sempre foram melhores do que agora, mesmo época que a gente nunca viveu e tomou conhecimento somente através dos livros,fotos, do cinema ou da TV.

Vivendo no século XXI, a década de 1920 era uma época dourada para Gil. Contudo, a ironia do filme está justamente quando os personagens dos artistas do início do século XX desdenham da própria época. Para eles o bom mesmo seria ter ser vivido na Paris da na segunda metade do século XIX, período conhecido como a Belle Époque. Para o essa turma da bela época, o melhor teria ser vivida em outro tempo mais antigo e assim sucessivamente...http://www.blogger.com/img/blank.gif

O insight de “Meia-Noite em Paris” é uma lição: a vida é sempre insatisfatória, independente de onde quando se viva. Então relaxe e esqueça esse negócio de pensar que “naquele tempo é que as coisas eram boas”. A felicidade está aqui e agora, basta desejá-la. O filme é otimismo puro, algo surpreendente na filmografia de Woody Allen, em que a ironia e o pessimismo geralmente dão o tom.

Um grande filme, sem sombra de dúvidas. E não se preocupe se você tem maior, menor ou nenhuma intimidade com os personagens de “Meia-Noite em Paris”. É claro um conhecimento mínimo que seja torna tudo mais legal, mas não é fundamental. Bacana mesmo é perceber para a centelha de genialidade espírito-filosófica contida nessa obra-prima de Woody Allen.

VEJA O TRAILER

terça-feira, 29 de novembro de 2011

As barbas do imperador


Semanas atrás, comentei aqui no Blog do Viteck a respeito do acervo da Biblioteca Cidadã Alice Weirich, no bairro São Lucas, aqui em Marechal Cândido Rondon. Inaugurado este ano, o espaço possui ainda um acervo modesto, mas com títulos muito interessantes nas mais diversas áreas.

E um dos “tesouros” da biblioteca é o livro “As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos”, da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. Já havia lido recentemente outro livro dela, chamado “O Sol do Brasil”, no qual ela escreveu – em um texto intenso e denso – sobre a Missão Francesa, grupo de pintores que desembarcou no Brasil no início do século XIX e que retratou a vida na corte e a natureza exótica do nosso país sob a perspectiva do olhar europeu.

Em “As Barbas do Imperador”, publicado em 2008 (Editora Companhia das Letras, 624 páginas), Schwarcz escreve uma biografia do segundo e último rei do Brasil. Tema por demais esmiuçado já em tantos livros escritos sobre D. Pedro II em mais de um século, o interesse da autora nessa biografia é contar a vida do imperador, principalmente, através do imaginário monárquico da época, “percebido justamente por meio da análise de rituais, costumes e tradição”, relata Schwarcz.

E é a própria autora que instiga o interesse do leitor a respeito da vida de D. Pedro II que “de órfão da nação se transforma em rei majéstico; de imperador tropical e mecenas do movimento romântico vira rei cidadão, para finalmente imortalizar-se no mártir exilado e em um mito depois da morte, com vistas não a recuperar tanto a sua história, mas antes sua memória, ou melhor, a seleção de determinadas memórias nacionais”.

D. Pedro II reinou no Brasil de 1840 a 1859. Órfão de mãe, o pequeno Pedro – com apenas cinco anos - foi deixado no Brasil pelo pai D. Pedro I, que voltou a Portugal nove anos depois de ter proclamado a independência do Brasil. Aos 15 anos, naquele que ficou conhecido como golpe da maioridade, D. Pedro II assumiu o trono em um período turbulento, em que esforços contínuos eram necessários para evitar a desfragmentação territorial diante de conflitos como a Revolução Farroupilha.

O Brasil, na época, era uma monarquia rodeada por repúblicas latinas, recém emancipadas da Espanha. Aliás, o Brasil foi o único país das Américas que se transformou em monarquia após a independência. Então a monarquia já sendo associada a uma instituição ultrapassada, ao longo de sua vida D. Pedro II se esforçou para vender ao mundo a imagem de um Brasil moderno, ao mesmo tempo que enaltecia aspectos de um império exótico. Exemplo disso foi o enaltecimento da figura do índio como símbolo do Brasil, assim como o café é o fumo, produtos de exportação do país.

O imperador também incentivou a pesquisa histórica, a educação e as artes, com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia Imperial de Belas-Artes e o Colégio Pedro II. D. Pedro II sempre se esforçou por associar a sua imagem a de um homem culto e estudioso, o que o levou a arroubos de imodéstia, como quando afirmou que a “ciência sou eu”. Mas, em um reino formado em sua grande maioria por analfabetos, a erudição de D. Pedro II era algo bastante singular, ainda mais se comparado ao pai, que entrou para a história como alguém mais interessado nas batalhas e nas mulheres do que nos livros.

Em “As Barbas do Imperador”, Schwarcz descreve ainda como era ser nobre no Brasil, as festas populares, relata a quase obsessão de D. Pedro II em derrubar do poder Solano Lopez durante a truculenta Guerra do Paraguai (1864-1870). A autora também destaca as três viagens que o imperador realizou ao redor do mundo, onde conheceu os Estados Unidos, a Europa e o Egito, entre outras regiões do globo.

E, como não poderia deixar de lado, a autoria vai a fundo na questão da escravidão, que era praticamente o modo de trabalho responsável pela produção das riquezas do Brasil, mas ao mesmo tempo era motivo de repulsa ao país em nações mais avançadas, que combatiam a escravidão. Curioso notar que, embora se colocasse como um homem moderno, D. Pedro II pouco fez de fato para acabar com o regime escravagista. Quem o fez foi a sua filha, princesa Isabel, que em 1888 assinou a Lei Áurea.

A alforria concedida sem qualquer direito de indenização aos donos de escravos foi o catalisador do golpe que derrubou a monarquia e implantou a república no país, em 1889. É bem verdade que os debates entre republicanos e monarquias já se estendia há décadas. Mas, com o avançar da idade de D. Pedro II, havia uma espécie de acordo ou sentimento de que a república seria implantada tão logo ocorresse a morte do monarca. Mas isso mudou, com a Lei Áurea.

Proclamada a república em 15 de novembro de 1889, dois dias depois o Imperador e sua família eram banidos do Brasil. Dois anos mais tarde, o imperador morreria em Paris, onde viveu uma vida modesta sustentado por doações de amigos e tendo como únicos bens uma edição original de um livro de Camões e um travesseiro cheio de terra do Brasil. Situação que ao longo dos anos só aumentou o mito do imperador, que logo após ser deposto recusou uma indenização proposta pelo novo governo republicano, no valor de 5 mil contos de réis, o equivalente hoje a cerca de R$ 2 bilhões.

Aliás, é na guerra entre monarquistas e republicanos que o livro de Schwarcz mostra-se mais intenso. Na guerra pública através das revistas da época, republicanos caricaturavam D. Pedro II como um senhor velho, com a sua longa barba branca, que só lhe aumentava a aparência de velho. Daí a associar a figura do imperador com o modelo antiquado da monarquia foi um simples passo dado pelos republicanos.

Interessantíssima é a reabilitação histórica do imperador no início do século XX, que tem como melhor exemplo Rui Barbosa, autor da lei que bania o imperador do Brasil e que, anos depois era um ferrenho defensor de que os restos, mortais de D. Pedro II, hoje enterrados em Petrópolis (RJ), fossem repatriados, diante da importância que o imperador teve para a história do país.

Ler “As Barbas do Imperador” é percorrer um período em que não só o Brasil, mas o mundo ocidental como um todo estava passando por um rápido processo de transformação. E é interessante perceber como a personalidade máxima do país se comportava em meio a essas mudanças. De certo, um homem de mil faces que jamais foi unanimidade, seja durante o reinado ou após a morte. E é esse homem, “despido” de sua coroa e dos demais símbolos da monarquia que Schwarcz nos revela nesse livro tão instigante.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Histórias Íntimas: 500 anos de sexo


Em seu mais novo livro - “Histórias Íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil” (Editora Planeta, 2011, 254 p.) -, a renomada historiadora Mary Del Priore se dispõe a tratar de um assunto que interessa a todos: sexo. Aqui, os leitores são convidados e espiar pelo buraco da fechadura e conhecer como o sexo vem sendo pensado, reprimido, desvencilhado de tabus e praticado ao longo dos cinco séculos de história do nosso país. Desde as primeiras relações entre indígenas, escravos trazidos da África e portugueses colonizadores, passando pelas medidas higienistas associadas ao sexo no século XIX até questões atuais que abundam na mídia no que diz respeito ao sexo e à sexualidade, este livro se dispõe a mostrar que a teoria e a prática do que acontece entre quatro paredes (ou fora delas), vêm mudando no tempo e no espaço.

Quem diria que na época do Brasil colônia um belo par de seios fosse uma das coisas menos eróticas do corpo de uma mulher. Ou que a gordura fosse símbolo de beleza. Ou que um púbis extremamente cabeludo (enquanto que hoje quanto menos pelos, melhor) era o que poderia existir de mais sensual. Partes íntimas limpas e bem cheirosas? Isso era coisa pra broxar qualquer um no século XVII, como esclarece um poema do poeta baiano Gregório de Matos, que em meio a obscenidades aqui impublicáveis escreveu que “lavar a carne é desgraça” porque “perde a carne o sal, a graça”.

Vencidas as preliminares do período colonial, “Histórias Íntimas” desnuda os anos de 1800, um século que a historiadora definiu como hipócrita. Hipócrita porque, ao mesmo tempo em que a sociedade pregava a castidade e depois o recato no casamento, o adultério era prática comum especialmente, é claro, pelas escapadas masculinas até o bordel da esquina. Que o diga D. Pedro I, o homem que bradou “Independência ou Morte” e tornou-se nosso primeiro imperador. Além do grito da independência, o Foguinho (como era chamado pela sua amante Domitila, a Marquesa de Santos) ficou famoso também pelos seus casos fora do casamento. Para D. Pedro e demais homens do Império, manter relações em casa, com a esposa, só uma rapidinha e olha lá. E isso desde que seguindo determinadas posições permitidas pela igreja. Sexo gostoso não era coisa que se fazia com a mãe dos seus filhos. Para isso existiam as prostitutas. Esposa sentindo (ou mostrando) prazer em uma relação, nem pensar! Isso não era coisa de mulher direita.

Mas, eis que com a chegada do século XX as coisas começam a mudar. O cinema, as revistas, a indústria da moda, a propaganda, etc. , começam a transformar cada vez mais rapidamente os conceitos e a prática do sexo. Exemplo disso, um escândalo: no Rio de Janeiro começa a circular a primeira revista erótica, a “O Rio Nu”, inspirada em publicações francesas e que trazia ilustrações e histórias cheias de sacanagens.

O incentivo cada vez mais crescente às atividades físicas no início dos anos 1900 também vai alterar a percepção do que é um corpo bonito e sexualmente atrativo. Sai de cena a gordura para ganharem destaque cada vez maior os corpos sarados para serem exibidos em roupas mais ousadas. Se antes o corpo devia se escondido. Aos poucos as roupas começam a encurtar. Nas praias e piscinas de clubes, é o caso dos biquínis, que foram ficando cada mais pequenos que até cabiam na palma da mão. O conservador Nelson Rodrigues não deixou barato. Em “Histórias Íntimas”, Priore reproduz trecho de entrevista do dramaturgo em 1969 para a revista Veja. Nela, Rodrigues revela toda a sua perplexidade ao ver tantos corpos femininos quase nus sem com isso despertar maiores interesses masculinos. “A mulher mais invisível do mundo é a mulher de biquíni”, disparou. Para Priore, Rodrigues “não entendia o que via. Não se tratava de moda, mas da evolução da moral moderna”.

Moral moderna que avançou numa velocidade jamais vista depois dos anos de 1950 com a revolução sexual impulsionada pela invenção da pílula anticoncepcional. Depois da pílula, caíam por terra tabus como virgindade e sexo antes do casamento. Com seus ecos vindos da Europa e dos Estados Unidos, o feminismo e a contracultura contribuíam de vez para espalhar a revolução sexual. Os dogmas do sexo como pecado começaram a ser abertamente questionados e abandonados pela sociedade nos anos 1960 e 1970. Na contramão desse liberalismo, chegou a Aids nos anos 1980. Gerou (ainda gera!) preocupação, mas a doença não foi capaz de impedir que as pessoas hoje vivam o sexo em sua plenitude.

“Histórias Íntimas” mostra claramente que o sexo chega ao século XXI mais sem-vergonha e apelativo do que nunca. Porém, nem tudo são prazeres. Por mais que nos sintamos desencanados sobre o assunto, o sexo ainda é cercado por temas espinhosos e que abalam a sociedade, tais como homossexualidade, impotência, a violência contra a mulher, a pedofilia, a erotização dos meios de comunicação e a desestruturação familiar, já que cada vez mais o casamento é eterno enquanto dura. Sinais evidentes que em se tratando de sexo, muita água ainda haverá de passar por debaixo da ponte e que nem os próximos 500 anos deverão dar o assunto por encerrado.

Mary Del Priore faz de “Histórias Íntimas” um livro excitante, que mexe com a nossa imaginação, mas longe de apelar para a vulgaridade. Embora prazeroso, o assunto é sério. Com sua escrita simples, o livro acaba com qualquer frigidez e se abre para ser possuído tanto pelo especialista como pelo mais lascivo sujeito interessado em matar a curiosidade sobre o tema. Consumada a leitura, fica uma certeza só: cinco séculos depois das caravelas portugueses terem aportado no que ficou conhecido como Brasil, hoje estamos muito mais à vontade para gozar a vida, em todos os sentidos...

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Salinger: uma vida


Escrever a biografia de um escritor avesso à publicidade e entrevistas, extremamente zeloso em restringir o acesso ao público sobre o que se passava em sua vida particular e, ainda mais, que ficou praticamente recluso em sua casa em uma pequena cidade por mais da metade de sua vida. Uma tarefa difícil, mas não impossível, e foi esta a que se dedicou o estadunidense Kenneth Slawenski, que em 2004 criou o projeto DeadCaulfields.com, um site totalmente dedicado à vida do escritor J. D. Salinger. Após sete anos de intensa pesquisa, Slawenski finalizou “Salinger: uma vida”, biografia publicada originalmente em 2010, logo após a morte do autor do clássico “O Apanhador no Campo de Centeio”, ocorrida em 27 de janeiro do ano passado. No Brasil, a obra acaba de ser lançada pela editora Leya, com tradução de Luis Reyes Gil.

Jerome David Salinger é um dos maiores escritores do século XX. Nascido em Nova York em 1º de janeiro de 1919, tornou-se famoso em 1951 com a publicação de “O Apanhador no Campo e Centeio”, uma novela sobre Holden Caulfield, um adolescente expulso da escola que perambula por Nova York. Sucesso imediato quando lançado, considera-se hoje que o livro teve uma grande influência no fenômemo da adolescência rebelde da sociedade norte-americana da década de 1950, ao lado da geração beat (que Salinger criticava!), do surgimento do rock and roll e de filmes como “O Selvagem” e “Juventude Transviada”, estrelado por Marlon Brando e James Dean, respectivamente.

Antes mesmo do enorme sucesso de seu primeiro livro, Salinger era considerado um escritor promissor, tanto é que já era tratado de modo diferenciado pela famosa revista literária The New Yorker. Mas, antes de chegar até as páginas da famosa publicação, muitos contos do escritor foram editados em revistas de menor importância dos Estados Unidos. O segundo livro de Salinger é “Nove Histórias”, uma coletânea de contos publicada em 1953. Além deste e de “O Apanhador no Campo de Centeio”, Salinger publicou apenas outros dois livros: “Franny e Zoey” (1961) e “Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira & Seymor: uma introdução” (1963), que traziam textos anteriormente publicados em forma de contos pela The New Yorker, todos abordando os personagens da incomum família Glass.

O último texto publicado por Salinger foi “Hapworth 16, 1924”, que saiu também nas páginas da New Yorker em 1965. O conto, mais um sobre a família Glass, foi duramente criticado. Desde então, Salinger, com apenas 46 anos, desistiu de publicar e cada vez mais se esforçou para viver uma vida em total anonimato na sua casa na pequena cidade de Cornish, localizada a cerca de 380 quilômetros de Nova York, para onde se mudara em 1952. Avesso à mídia, recebendo em sua casa poucos amigos, o que Salinger fez até o fim de sua vida foi uma grande incógnita, fato que somente alimentou o mito em torno do escritor.

Na biografia que escreveu, Slawenski se esmera em revelar os motivos que levaram Salinger a se afastar cada vez mais do convívio público. Engana-se, por exemplo, quem pensa que o “fracasso” do último conto do escritor tenha tido maior peso na decisão dele de deixar de publicar. Ao longo do livro, Slawenski resgata, além da trajetória profissional de Salinger - um dedicado autor que exercia controle total sobre sua obra, desde a edição de uma simples vírgula até a capa de seus livros -, também a vida familiar e, principalmente, a jornada espiritual do escritor.

Instigante nesse sentido, por exemplo, é o capítulo em que Slawenski aborda a experiência de Salinger como combatente da Segunda Guerra Mundial, onde participou da famosa batalha do Dia D (06 de junho de 1944, na França) e os longos meses de combate que se seguiram até o fim do conflito, em 1945. Como não podia deixar de ser, os horrores da guerra, a morte violenta de amigos em campos de batalha, e a depressão que acometeu incontáveis soldados anos depois também afetaram profundamente a vida do escritor.

Desde seus primeiros textos, Salinger já trazia fortes traços de uma religiosidade, que do mundo real se transportava para a sua escrita e se manifestava em epifanias redentoras nas vidas de seus personagens. Conforme Slawenski, Salinger entendia cada vez mais que escrever era uma forma de oração. “Depois de O Apanhador no Campo de Centeio, o foco da ambição de Salinger mudou e ele se dedicou a produzir ficção incrustada de religião, em histórias que expunham o vazio espiritual inerente à sociedade americana”, afirma o biógrafo. Como reação ao seu desenvolvimento espiritual, Salinger acreditou ser necessário se afastar da badalação natural do estrelato, o que ele acreditava ser nocivo à sua meditação e trabalho como escritor.

Assim, quanto mais crescia a fama de Salinger, mais retirado ele ficava. Para Slawenski, “Salinger não escolheu deliberadamente se afastar do mundo. Seu isolamento foi uma progressão insidiosa que o envolveu aos poucos. Ele identificou as sombras descendo sobre ele, mas infelizmente se sentiu impotente para mudar o curso. Seu trabalho se tornara uma obrigação sagrada, e ele aceitou que aquela solidão e reclusão fossem o preço que ela exigia para ser cumprida”.

Desde quando deixou de publicar em 1965, sempre se especulou se, ao menos, ele continuou escrevendo, o que é praticamente certo. Quando da morte de Salinger, houve um frisson sobre onde estariam estes prováveis textos inéditos. Até hoje, ninguém os encontrou. Sobre isso, conforme relatado na biografia, existem as teorias mais diversas. Uma delas é que Salinger tenha enterrado seus textos em diversos pontos de sua propriedade em Cornish. Isso só reforça o sentimento de que dificilmente textos inéditos do escritor algum dia se tornem conhecidos. Salinger poderia ter publicado um novo livro quando quisesse. Ofertas não faltaram. Ele recusou todas. Junto a isso, pediu aos seus amigos que destruíssem todas as cartas por ele enviadas ao longo dos anos, em nome de sua privacidade, apagando material riquíssimo para biógrafos do autor, como Slawenski.

Mesmo diante de todos os esforços do escritor para tornar sua vida privada a mais desconhecida possível, em “Salinger: uma biografia” Slawenski produziu uma biografia de fôlego, intensa e contagiante. Certamente o biografado desaprovaria a publicação, desgostoso em ter sua vida tão exposta. Ciente disso, o biógrafo justifica humildemente a obra dizendo que ela é honesta e de coração: “Não é um pranto pelo morto. É um convite para uma saudação. Uma saudação não à memória, mas a essência de J. D. Salinger, e eu a ofereço aqui de novo a qualquer um que deseje honrar o escritor agora ou a qualquer momento nos anos que estão por vir”.

Se esta foi a proposta do livro, o biógrafo cumpriu o objetivo e, certamente, os leitores órfãos das famílias Caulfield e Glass aceitam de bom grado essa oferenda respeitosa e sem sentimentalismo de Slawenski a Salinger.

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Site do autor Kenneth Slawenski, dedicado a J. D. Salinger:
www.deadcaulfields.com

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Quebrando o Tabu: um outro olhar sobre as drogas


O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se lançou em uma jornada espinhosa e polêmica: promover um debate internacional que vise incentivar formas diferentes de pensar e agir com relação às drogas. Atuando como presidente da Comissão Global de Políticas Sobre Drogas, FHC tem viajado pelo mundo, ouvindo e discutindo com especialistas, viciados, ex-usuários, traficantes, policiais, autoridades políticas respeitadas, etc.. Conforme mais se aprofunda no tema, mais ele se convence de que, da forma como as drogas são combatidas, esta é uma guerra perdida.

Uma parte desse trabalho do ex-presidente pode ser vista no documentário “Quebrando o Tabu”, recém lançado. No filme, dirigido por Fernando Andrade e tendo como um de seus produtores o famoso apresentador Luciano Huck, FHC se propõe a colocar o dedo na ferida e abrir uma discussão sobre como é possível lidar para de fato diminuir o problema o problema.

O filme inicia mostrando que desde que o mundo é mundo, as drogas sempre fizeram parte da vida das pessoas e que, portanto, sonhar com uma sociedade sem tóxicos, é utopia. Dito isso, parte-se para a Guerra às Drogas declarada pelos Estados Unidos em 1971, quando impôs tolerância zero aos usuários e traficantes de drogas ilícitas na sociedade estadunidense. Ideia que, como os Estados Unidos exercem forte influência nas Nações Unidas, acabou se espalhando por praticamente todo o planeta. Uma luta inútil pois, como temos visto nesses 40 anos desde que a Guerra às Drogas foi declarada é que, apesar de todas as prisões, apreensões e mortes, as pessoas nunca deixaram de se drogar e que o tráfico e violência nunca não parou de crescer.

É a partir desse ponto - a falência total deste modelo de combate às drogas (que no filme é confirmado pelos ex-presidentes dos EUA Jimmy Carter e Bill Clinton) - é que surge o que há de mais interessante em “Quebrando o Tabu”, que é a seguinte questão: se a repressão e a criminalização não resolvem o problema, o que fazer então? Certamente uma pergunta que sugere várias respostas e nenhuma delas definitivas. Mas existem experiências em alguns países que podem estar indicando o caminho.

Para conhecer essas respostas, FHC foi até à Holanda, Suíça e Portugal, onde políticas públicas que sugerem a descriminalização do usuário de drogas têm alcançado resultados encorajadores. Contudo, como é enfatizado no documentário, implantar tais mudanças indica também confrontar aspectos culturais e costumes de cada sociedade. De nada adianta mudar a lei, se esta não for acompanhada de educação e esclarecimento da população sobre as drogas, seus reais efeitos e consequências.

O documentário demonstra que alguns passos são importantes. Um deles é separar os tipos de drogas. Por exemplo: cocaína, crack e heroína, altamente viciantes e com potencial grande de degradação do usuário, não podem ser colocadas na mesma categoria da maconha, cujos efeitos - está se comprovando cada vez mais - são menos danosos ou no máximo equivalentes ao álcool e ao tabaco.

Aliás, a maconha recebe uma atenção especial no filme, tendo em vista que tem crescido em várias partes do mundo o movimento visando à descriminalização e até mesmo a legalização dela. É o caso de experiências da Holanda onde é possível comprar livremente maconha, seguindo algumas regulamentações que dizem respeito à quantidade e locais onde ela pode ser comprada e consumida em público. Tais iniciativas têm mostrado que a regulamentação do uso da maconha, ao invés de ser a porta de entrada para outras drogas, pode ser um impedimento para o consumo de outros tóxicos mais pesados e que são de interesse dos traficantes que o usuário consuma. O importante, então, seria afastar o usuário do traficante.

Em “Quebrando o Tabu”, são relevantes ainda os depoimentos, entre outros, do famoso médico Dráuzio Varella, que defende que os usuários de drogas devem ser tratados como doentes, e não como criminosos, e do escritor Paulo Coelho, que assume ter usado inúmeros tipos de drogas por um período em sua vida. E é dele um dos registros mais interessantes do filme. O escritor defende que não adianta dizer aos adolescentes e jovens que a droga é ruim, porque quando eles experimentarem vão perceber que a droga dá prazer. No entanto, é preciso dar informação sobre as consequências, para que as pessoas façam a escolha entre se abster ou não de tóxicos. E, como alerta Paulo Coelho, as pessoas precisam saber que, caso optem por usar determinadas drogas, podem estar abdicando do direito de decidir sobre os destinos de suas vidas, uma vez que o viciado passa a ser controlado pela droga, o que pode conduzi-lo a um caminho sem volta.

Com cerca de 80 minutos de duração, “Quebrando o Tabu” se propõe a jogar limpo com relação às drogas, sem alarde, sem preconceito, tratando o tema embasado na racionalidade. Ao contrário do que alguns possam estar imaginando, o filme não faz apologia às drogas. Apenas procura enfatizar métodos melhores para combatê-las. E por as drogas estarem nas ruas, nas escolas, no trabalho e, para infelicidade de muitos, dentro da própria casa, este documentário é obrigatório para professores, autoridades, pais, jovens, adolescentes... É um documentário para todo mundo.

Logicamente, ao fim do filme temos mais perguntas do que respostas. Deve-se liberar? Descriminalizar? Se for o caso, que drogas, para quem? Estamos preparados para isso? Quem sabe... Mas, sejamos sensatos de admitir que acabar com as drogas é impossível. Temos que nos conscientizar que existem meios de reduzir seus danos e o consumo. Basta procurar caminhos alternativos, que não apenas o de criminalizar, prender e matar quem vende e quem consome.

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Site oficial do filme:
www.quebrandootabu.com.br

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Quem sabe faz ao vivo e quebra tudo no final


Eu pretendia não voltar por um bom tempo ao assunto, mas já que estamos nesta semana de Rock in Rio e o negócio é quente, então vale a pena dar uma esticada no tema.

No sábado passado (24), relembrando, o disco “Nevermind” do Nirvana completou 20 anos e para comemorar a data e arrancar mais alguns milhões de dólares dos fãs (sim, eu também caí no golpe...), também foi lançado um edição super luxuosa do disco. Entre diversas gravações inéditas, raridades e faixas ao vivo, o melhor desse pacote é o DVD “Live at the Paramount”, que já está sendo vendido por cerca de R$ 40 no Brasil, mas quem quiser também encontra bem fácil para download em blogs especializados por aí.

O DVD tem algumas particularidades que o tornam tão especial. Uma delas é que o show registra o momento exato em que o Nirvana despontava para a fama mundial. Foi gravado em 31 de outubro de 1991, em Seattle (EUA), apenas cinco semanas após o lançamento de “Nevermind”. Outro ponto é a qualidade da imagem e áudio, já que é o único show da banda registrado em película, o que resulta em um vídeo de altísssima definição. Por fim, o que faz de “Live at the Paramount” um item obrigatório para os fãs é aquilo que mais importa: a banda em ação.

Enquanto a fama do Nirvana no início dos anos 90 só fazia crescer, a qualidade de seus shows ia ladeira abaixo. Talvez alguém se lembre da banda tocando no Brasil em 1993, no hoje extinto festival Hollywood Rock. O show de São Paulo foi definido pelos próprios Kurt Cobain e companheiros como a pior apresentação da carreira do grupo.

Uma semana depois, se apresentaram no Rio de Janeiro, com transmissão ao vivo pela Rede Globo. O show foi um pouco melhor, mas ainda assim, revendo o vídeo anos depois, é deprimente assistir Kurt Cobain anoréxico, chapadaço e com um tédio indisfarçável tocando na frente de 100 mil pessoas. O cantor era o retrato exato de uma música que ele escreveu e que o Nirvana gravou chamada “I Hate Myself and I Want To Die” (“Eu Me Odeio e Quero Morrer”).

Em “Live at the Paramount” a história é bem diferente. Tocando para um público de 5 mil pessoas, Kurt Cobain, Krist Novoselic e Dave Grohl, como fica evidente no DVD, estão se divertindo pra caramba com o sucesso que estavam fazendo naquele momento com “Nevermind”.

Fisicamente Kurt Cobain estava melhor, apesar de que na época já fosse viciado em heroína, mas não estava tão detonado pela droga. Ao todo, são 70 minutos de rock tocados com vigor e com verdadeiro “teen spirit”, encerrando com a destruição dos instrumentos, como era de praxe nas apresentações do Nirvana. Coisa linda de se ver!

O Nirvana em “Live at the Paramount” é rock em estado bruto. Talvez exatamente aquilo que tantos que por esses dias criticam o festival do senhor Medina gostariam de ver Rock In Rio...

sábado, 24 de setembro de 2011

"Nevermind", do Nirvana, completa 20 anos de lançamento hoje


Ao voltar para Deus com passo hesitante,
Com as canções meio escritas e a obra inconclusa,
Que trilhas teus pés feridos pisaram,
Que morros de paz ou dor escalaram?
Que Deus tenha sorrido, pego tua mão,
E dito: “Pobre bufão, louco de paixão!”
O livro da vida é duro de entender:
Por que não continuaste na escola?


- Charles Hanson Towne, no poema “Sobre um Suicida”, de 1919.

Neste sábado, 24 de setembro, “Nevermind” do Nirvana completa 20 anos de lançamento com o indiscutível mérito de ser, desde então, o último grande disco de rock. Há dez anos, “Is This it” dos Strokes talvez até se insinuou como um clássico, mas o tempo se encarregou de minimizar a importância do álbum daqueles moleques de Nova York. Eles fizeram uma grande estreia, mas longe de causar uma revolução. Ao contrário do Nirvana, que estreou sem estardalhaço com “Bleach” em 1989 e mudou a história da música pop dois anos depois com “Nevermind”, disco que subverteu para sempre a até então intocável divisão entre o underground e o mainstream.

Não havia dúvidas que 2011 seria um ano em que a gente ia ouvir falar muito sobre o Nirvana. Dave Grohl já havia dado a dica quando anunciou que Krist Novoselic participaria do novo disco do Foo Fighters, “Wasting Light”, lançado em abril e produzido por Butch Vig, o mesmo que assinou a produção de "Nevermind". Se isso foi homenagem ou oportunismo de Dave Grohl, fica a critério de cada um decidir. Depois, é claro, as matérias da imprensa ao redor do mundo. Desde o início do ano elas já começaram a inflar o oba-oba em torno do marco dos 20 anos, que virou fuzuê de vez quando foi anunciado o mega-pacote comemorativo, que inclui na sua embalagem mais gorducha um livro com fotos raras e inéditas, quatro CDs que contêm o “Nevermind” original remixado, outro “Nevermind” com uma mixagem alternativa (e mais pesada) jamais lançada, lados B, demos e a íntegra do show que o Nirvana realizou em Seattle em 31 de outubro de 1991, capturando o exato momento em que o Nirvana estava em ascensão meteórica rumo ao estrelato mundial. Mesmo show que também é lançado agora em DVD e poderá ser comprado separadamente. Enfim, um super lançamento, que acompanha ainda edições caprichadas em vinil quádruplo ou uma versão mais modesta em CD duplo.

Com previsão de chegar às lojas na próxima terça-feira (27), desde quarta-feira (21) os áudios dos quatro CDs do super box já escorriam pelos blogs ao redor do mundo. E ao por os ouvidos no material, para decepção dos fãs, fica evidente que é quase tudo mais do mesmo. De interessante mesmo é o show de 31 de outubro de 1991, embora o áudio, em boa qualidade, já fosse bastante conhecido de um disco pirata de nome “Trick or Treat”. Luxo mesmo, então, só o DVD, que sai com o título “Live at Paramount” e do qual algumas partes já foram vistas no clip de “Lithium” ou no documentário “Live Tonight! Sold Out!!”. Ah, o mesmo show também já havia sido dissecado pelo jornalista André Barcinski no livro Barulho, de 1992. Sim, o filho da mãe sortudo esteve lá, gostou muito do que viu e decretou na época:

“O legal do Nirvana é que eles ainda não têm uma história. Ela está sendo contada agora. Daqui uns dez ou vinte anos, a gente vai poder falar daquela ‘loucura do final de 91’".

O Nirvana escreveu rapidamente sua história, encerrada abruptamente quando Kurt Cobain disparou um tiro contra a própria cabeça. E com tudo o que já foi escrito, visto e falado desde então, é meio chato, redundante ou mesmo difícil escrever algo de novo sobre o Nirvana. Mas num exercício de paciência, seu e meu, vamos recapitular um pouco a história.

Nevermind

A banda nasceu oficialmente no dia 19 de março de 1988. Embora Kurt Cobain e o baixista Krist Novoselic já tocassem juntos há algum tempo, foi apenas alguns meses antes de lançar o primeiro single que eles batizaram a banda com o nome definitivo. O Nirvana estreou com um álbum em 1989. “Bleach” não teve nenhuma grande repercussão, embora tenha credenciado a banda para circular livremente entre a turma alternativa. O disco também rendeu a primeira turnê européia do Nirvana que passou por pequenos clubes junto com o TAD, nome de peso maior dentro da cena rock de Seattle.

O ano de 1990 foi fundamental para a carreira da banda. Descontentes com o rendimento do baterista, a banda deu adeus a Chad Channing e chamou para o seu lugar Dave Grohl. Foi o início da formação clássica do Nirvana. Kurt também não estava satisfeito com a gravadora Sub Pop e passou a enviar dezenas de fitas demos a vários selos. Em abril de 1991, a isca foi mordida pela DGC, um braço da gigante Geffen Records, que também havia contratado algum tempo antes o Sonic Youth, um dos maiores ídolos de Kurt Cobain. A princípio a DGC não se entusiasmou com o Nirvana e apostava poucas fichas na banda.

Quando a gravadora DGC contratou o Nirvana por 290 mil dólares, valor relativamente baixo para os números da indústria musical, a gravadora não tinha planos muito ambiciosos para a banda. Num primeiro momento, a Geffen esperava vender 50 mil discos e, com o passar do tempo e com um pouco de sorte, chegassem a 500 mil unidades - se alguém na época dissesse que 20 anos depois o álbum teria vendido mais de 30 milhões de cópias seria considerado maluco!

Em maio e junho de 1991m Kurt Cobain e seu colegas gravaram o disco “Nevermind”. O orçamento inicial para a gravação era de 65 mil dólares, mas até ser finalizado o custo subiu para 120 mil dólares, valor infinitamente maior do que os 600 dólares gastos na produção de “Bleach”. O nome “Nevermind” surgiu de uma conversa entre Kurt e o baixista Krist Novoselic. Numa tradução livre, o título do disco é algo como “Deixa pra lá” ou “esqueça isso”, o que Kurt entendia ser uma metáfora para o seu estilo de vida. “Nevermind” também remetia a “Smells Like Teen Spirit”, a música que estava se tornando a mais falada durante as gravações, embora inicialmente a banda achasse que o maior sucesso seria a faixa “Lithium”.

O Nirvana dedicou um bom tempo para a produção da capa. Kurt teve a ideia de colocar um bebê (Spencer Elden, hoje com 20 anos, na época fotografado peladinho por Kirk Weddle) nadando atrás de uma nota de um dólar. Era uma piada dos músicos com relação à própria banda, que ao abandonar o selo independente Sub Pop teria se vendido ou estaria nadando atrás do dinheiro fácil das grandes gravadoras. Ao mesmo tempo, a capa geraria controvérsia ao mostrar o bebê com o pauzinho de fora.

No dia 24 de setembro de 1991 “Nevermind” chegou às lojas. Em uma semana a prensagem inicial de 50 mil cópias havia se esgotado. Um mês depois, o álbum chegou à marca das 500 mil cópias comercializadas, causando um verdadeiro furacão dentro da DGC, que passou a dedicar mais atenção ao grupo. Ainda em outubro, a MTV incluiu o clipe de “Smells Like Teen Spirit” em sua programação normal. As boas vendas continuaram e em 11 de janeiro de 1992 “Nevermind” chegou ao primeiro lugar da parada da Billboard, ultrapassando “Dangerous”, do astro pop Michael Jackson. O Nirvana havia chegado ao topo.

Junto com Nirvana, toda a cena musical de Seattle cresceu junto. Nomes como Pearl Jam, Soundgarden e Alice in Chains tiveram um impulso imenso em suas carreiras. Outras bandas como TAD, Mudhoney ou Love Battery, que estariam condenadas ao eterno anonimato se não fosse o empurrão de “Nevermind”, certamente estariam condenadas para sempre ao anonimato. A força do segundo álbum do Nirvana, enquanto propulsor de um fenômeno cultural, ainda hoje é difícil de dimensionar ou explicar. A toda aquela ebulição deram o nome de grunge, vendido como a coisa mais cool do começo dos anos 90 para logo depois ser descartado como mais um simples capricho desgastado da indústria fonográfica quando perdeu o gosto de novidade.

Lado Girl/Lado Boy

Grande parte de “Nevermind” é fruto de um coração partido. O biógrafo de Kurt Cobain, Charles Cross, no livro “Mais Pesado Que o Céu” afirma que quatro músicas presentes no disco foram escritas pelo líder do Nirvana após o rompimento do relacionamento de cerca de seis meses entre ele e Tobi Vail, integrante da banda Bikini Kill. São elas: “Smells Like Teen Spirit”, “Drain You”, “Lounge Act” e “Lithium”. Além dessas, também “Aneurysm”, que foi lançado como um lado B e depois apareceu também na coletânea “Incesticide”.

Kurt Cobain, segundo Cross, ficou com uma dor de cotovelo tão intensa pelo fim do namoro com Tobi Vail que, prestes a iniciar a gravação do que seria “Nevermind” ponderou por um tempo em dividir o disco em dois temas. O lado Girl – só com as canções traumaticamente inspiradas por sua ex-namorada – e lado Boy, com canções mais autobiográficas de Kurt, onde poderiam entrar faixas como “Sliver” e “Sappy”. O líder do grupo desistiu da ideia cafona, mas as canções sobre Tobi Vail permaneceram espalhadas por “Nevermind”. Como é comum entre os grandes artistas, Kurt Cobain transformou seu sofrimento no melhor de sua arte.

Porém, “o ódio que ele tinha pelos outros era leve comparado à violência que traçava contra si mesmo”, escreveu Charles Cross. Por um capricho do destino, a mesma dor emocional que inspirava Kurt Cobain a crescer artísticamente, abrindo-o para composições mais pessoais e dotadas de uma agressividade genuína, também escancararam as portas rumo à ruína total do músico. Sem Tobi, o líder do Nirvana encontrou consolo na heroína. Na época do lançamento de “Nevermind”, Kurt Cobain já era um junkie de primeira grandeza e nem o sucesso, o casamento com Courtney Love e o nascimento da filha Frances Bean serviram de consolo para ele. Embora jovem, rico e com uma nova família, aos vinte e poucos anos Kurt já se sentia “entediado e velho”, como cantou em “Serve the Servants”, música que abre o disco derradeiro “In Utero” e onde Kurt relaciona todos os motivos para o suicídio que iria cometer em abril de 1994.

O filhote estropiado da ninhada

O escritor norte-americano J. D. Salinger (1919-2010) na sua novela “Seymor, uma apresentação” (de 1959), escreveu:

“Parece-me indiscutível que muita gente no mundo todo, malgrado as diferenças de idade, cultura e dotes naturais, reage com ímpeto especial, em certos casos até mesmo febril, aos artistas e poetas que, além da reputação de produzirem arte de alta qualidade, têm algo extravagantemente errado como indivíduos: um defeito espetacular de caráter ou de comportamento cívico, uma desgraça ou vício supostamente românticos – extremo egotismo, infidelidade conjugal, surdez, cegueira, sede insaciável, tosse mortal, fraqueza por prostitutas, certa parcialidade em favor do adultério ou do incesto em larga escala, queda comprovada ou não pelo ópio ou sodomia etc. etc. Deus tenha piedade dessas solitárias criaturas. Se o suicídio não encabeça o rol das constrangedoras enfermidades dos homens criativos, é impossível negar que o poeta ou artista suicida sempre mereceu uma grande dose de ávida atenção, com frequência por razões meramente sentimentais, como se ele fosse (para colocar a coisa de maneira muito mais horrível do que realmente desejo) o filhote estropiado da ninhada”.

Uma descrição que cai como uma luva para Kurt Cobain, que na carta de suicídio descreveu a si mesmo como “um bebê errático e mal-humorado”. Somente alguém que tinha algo “extravagantemente errado como indivíduo”, um legítimo “filhote estropiado da ninhada” poderia conceber “Nevermind”. O disco em si é um punhado de canções com letras formadas por colagens autobiográficas de uma infância triste, uma adolescência turbulenta, um coração dilacerado pela rejeição amorosa e uma vida adulta predestinada à autodestruição. Tudo isso potencializado pela força avassaladora de uma guitarra, um baixo e uma bateria tocados com fúria autêntica por sujeitos que até aquele momento da vida não passavam de uns completos fodidos sem nada a perder.

É na dor, na raiva e na sinceridade contidas nos 42 minutos entre o início de “Smells Like Teen Spirit” e o fim de “Something in the Way” que o disco se impõe como algo muito maior do que um punhado de canções pop. Mas também vai além e cada um dos milhões de fãs ao redor do mundo tem seus motivos para fazer deste um álbum tão especial em suas vidas. Duas décadas depois, o disco continua carregado de significados, mesmo para as gerações que nasceram depois de ele ter sido lançado e hoje insistem em ouvi-lo incansavelmente. Isso, aliado à repercussão das comemorações do 20º aniversário, mostra que “Nevermind” definitivamente se estabeleceu como um marco da cultura da rebeldia, expressivo enquanto arte e misterioso o bastante enquanto fenômeno de massa para nos fazer correr atrás de respostas para tentar entender, afinal, o que foi toda aquela "loucura do final de 91"...

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Ignácio de Loyola Brandão: “O sistema de ensino não habitua a criança a ler”


Desde terça-feira (13), acontece em Marechal Cândido Rondon a Semana Literária do Sesc, evento que será encerrado neste sábado (17), com atividades na Praça Willy Barth na parte da manhã e da tarde. Incluindo a programação, na quinta-feira (15) esteve na cidade do escritor Ignácio de Loyola Brandão, que proferiu palestra sobre o tema “Inspiração existe? Onde um escritor vai buscar seus temas?”. Loyola nasceu em 1936, em Araraquara (SP). Iniciou na atividade jornalística aos 15 anos, e atuou em publicações como Última Hora, O Estado de São Paulo, Revista Planeta e Vogue. Iniciou a carreira literária em 1965. Desde então, publicou vários títulos hoje consagrados como “Zero”, “Dentes ao Sol” e “A Altura e a Largura do Nada”. Em 2000, foi vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro de contos por “O Homem que Odiava a Segunda-Feira”. Nesta entrevista exclusiva, Loyola falou sobre o processo de formação do escritor, discutiu o mercado editorial, além de fazer críticas à maneira como a literatura, de uma forma geral, é ensinada nas escolas.

Partindo do tema da sua palestra na Semana Literária do Sesc, de onde vem a inspiração do escritor para escrever?
A inspiração, essa coisa que se acha que cai do infinito, do divino, isso não existe pra mim. Existe a realidade, a vida em torno de nós. Então você tem que olhar o tempo inteiro para tudo à sua volta, com um olhar atento, desperto, cheio de sensibilidade e disso tirar material. Talvez inspiração seja isso: chega um momento em que você bate o olho e alguma coisa mexe por dentro e aí você sabe que vai sair. Não sabe se é um conto, uma crônica, um poema ou se é um romance. Já comecei a escrever um conto que virou romance, como “Bebel que a Cidade Comeu”, meu primeiro romance. Também teve um romance que eu comecei e que terminou como um conto, que é “Pega Ele, Silêncio”, que eu queria fazer um grande livro sobre boxe e acabou reduzido a um conto de dez páginas. Isso é normal. No fundo, então, inspiração é o olhar agudo. Eu aprendi muito isso no jornalismo. O jornalista tem que olhar atrás dos fatos para descobrir o porquê de tais fatos estarem acontecendo e isso eu levo pra literatura.

Na metade do século XX, principalmente nos Estados Unidos, esteve bastante em evidência o jornalismo literário com grandes nomes, como o estadunidense Truman Capote, por exemplo. Esse gênero praticamente sumiu dos jornais. Este é um gênero datado ou é possível fazer jornalismo literário ainda?
É sempre possível. É que as pessoas não têm mais o talento jornalístico e nem o talento literário para juntar, essa é que a questão. Mas, hoje se discute se aquilo foi jornalismo literário ou apenas um jornalismo que bem escrito, que foi além da mediocridade dos jornais. Quando eu digo mediocridade, eu digo da medianidade dos jornais. Talvez tenha sido isso. O jornalismo literário está aberto a quem quiser fazer. Se você resolve fazer uma reportagem e estendê-la, escrevê-la muito bem feita, conseguir ter um estilo e descobrir uma maneira peculiar, isso pode ser jornalismo literário. Mas no fundo, para mim, isso é jornalismo bem feito, pronto. Não tem nada a ver com literatura. Aproxima-se da literatura, que inclui imaginação, invenção, fantasia, memória. O jornalismo não permite invenção, fantasia e delírio. Essa é a grande diferença. O jornalismo é uma camisa de força. O jornalista tem que contar o que está vendo e a verdade. Já quando eu pego um personagem, eu minhoco dentro dele o quanto eu quiser.

A pessoa decide ser ou ela se descobre escritora? E quando foi que o senhor percebeu que havia chegado a hora de se assumir como escritor?
A pessoa decide ser. Ela gosta de ler, de literatura e decide escrever. Eu encontrei ao longo da vida muita gente que disse “eu quero se escritor” e foi ser. Porque é uma decisão. Agora, tendo talento você continua e faz. Não tendo, é outra coisa. Eu era jornalista e escrevi desde criança. Eu era muito solitário, muito esquisito e escrever era minha maneira de fugir do mundo. Sempre gostei de ler e sempre gostei de escrever. Aí fui ser jornalista, crítico de cinema. Mas uma hora, eu fazendo matérias, entrevistas, reportagens, eu sentia que não podia dizer tudo, que aquele material tinha coisas a mais. E também, como eu cheguei a São Paulo muito jovem, tinha 21 anos, eu frequentava muito a noite paulistana e comecei a achar personagens entre aquelas mulheres da noite, jornalistas que eu encontrava à noite, boêmios decadentes, vagabundos, prostitutas, modelos, manequins. Comecei a transformar isso em material e disse que ia escrever um livro sobre a noite. E escrevi. Só que antes disso eu já havia escrito quatro romances e os quatro eu joguei fora. Eu queria ser escritor. A pessoa vai em busca do sonho. Não tem outro caminho. De repente a pessoa começa escrevendo...

A pessoa se descobre escritora escrevendo.
Exato. Perfeito.

Existe o hábito de dizer que o brasileiro lê pouca literatura. O senhor concorda com isso?
É um chavão. As pessoas se acostumaram a falar que o brasileiro lê pouco. E realmente ele não lê muito porque não tem acesso ao livro. O preço é um impeditivo e deveria ter mais bibliotecas. Antes disso, você tem um sistema de ensino que não habitua a criança a ler. O sistema é muito deficiente e não vejo nenhuma melhora porque os ministros são todos estúpidos, não estão preocupados, é só política. Deveria haver uma reforma imensa do ensino, dar ao professor condições de trabalhar. Os professores são mal preparados, as escolas são ruins e vão preparar alunos ruins. Os professores não têm tempo de preparar aula, de ler, de contar histórias. Quando o professor não conta história, a classe está ali solta. A contação de história, que é uma coisa tão simples, é que ajuda na formação do leitor. Então, é todo um sistema que tem que ser reformulado. Nos últimos anos, algo que tem ajudado muito são as feiras, esses empreendimentos como o que o Sesc está fazendo, e os escritores percorrendo o país. Nunca, antes, isso aconteceu. Escritores eram funcionários públicos, trabalhavam em ministérios, autarquias, etc. Eram muito importantes e ficavam isolados nos seus redutos fechados porque eles eram os escritores. Eu lembro que eu tentei me aproximar de escritores, eu tinha vinte e poucos anos, e eles me olhavam com desdém. Essa gente hoje, toda essa geração, desde os que têm 30 e poucos anos até os 70 e tantos, nós estamos na rua, no palco e nós somos muito criticados por isso. “Ah, vocês são vaidosos!”. Somos vaidosos, todo mundo é. Mas nós estamos aqui fazendo um trabalho. Em cada cidade eu tenho certeza que eu conquisto pelo menos uns dois leitores e isso eu acrescento, acrescento e acrescento. Tanto que me admira, de repente, o número de pessoas na plateia. Eu estive no Ceará, numa cidadezinha do sertão chama Ocara, de 20 mil habitantes. Tinha a Bienal de Fortaleza, no Centro de Convenções. A secretária de Cultura perguntou a vários jornalistas se eles topariam fazer a bienal fora daquele local e concordamos. Muitos foram para bairros distantes e outros para cidadezinhas desse tamanho. E eu fui para Ocara num sábado de manhã. Fui recebido no centro comunitário, que eles lavaram, deixaram tudo bonitinho. Estavam todos lá com as roupas de sábado. Gente humilde, estudante, professor. Todo mundo! E uma mulher muito simples chegou pra mim e disse: “eu sou analfabeta, não sei ler. Mas eu ouvi essas histórias e eu quero aprender a ler. Mas como é que faz um livro?”. Eu perguntei: “como é que escreve?”. Ela: “não, como o senhor põe letrinha por letrinha dentro do livro?”. Eu fiquei comovido e comecei a explicar como é o processo de tipografia. Fiquei muito embananado na hora e uma professora me ajudou. Aí a mulher falou: “é muito bonito, professora. Eu quero aprender!”. Isso foi uma coisa deslumbrante. Você pegar aquela velha, ela tinha uns 78 anos, uma sertaneja abatida... Dali a pouco ela voltou e perguntou se eu aceitaria um presente. A base econômica de Ocara é algodão, milho e mel. A mulher me trouxe um litro de mel puríssimo e a rolha era um sabugo. Eu levei aquilo embaixo do braço. Foi o melhor cachê que eu já recebi. O melhor! Então tem dessas coisas. Eu fujo um pouco da pergunta, mas é um pouco isso. Esses escritores estão acreditando que é possível fazer esse trabalho paralelo.

O período da adolescência é a época ideal para a escola apresentar os autores brasileiros clássicos para os alunos?
Existe um grande erro e isso, nós escritores, sempre estamos falando. Muitos anos atrás, meu filho André, que hoje tem 30 e tantos anos, falou pra mim: “pai, estou lendo esse livro Memórias de Um Sargento de Milícias, mas é muito chato.” Ele tinha 12 anos. “Eu não entendo as palavras, não entendo as coisas”. Claro, deram para ele o livro errado. Há anos a gente vem sugerindo que se inverta o processo. Comece com os autores contemporâneos, que têm uma linguagem normal, que a realidade é essa onde a pessoa se reconhece, e na medida que você vai passando de ano, aí vai indo para trás. Quando você tiver 20 ou 16 anos, aí você consegue ler um clássico. Você consegue ler, por exemplo, Machado de Assis, porque ele é bom e te conquista. Mas não comece com Dom Casmurro, que é muito intelectual. A angústia do Bentinho. Pô! O cara quer saber se o Bentinho foi corno ou não e ele não descobre nunca! Então, a escolha dos livros é errada e também a sequência que eles são apresentados. Eu concordo com você. Aí você acaba obrigado a ler. Ninguém pode obrigar ninguém a ler. Leitura é prazer. Estão republicando agora as obras do Jorge Luís Borges. O livro “Borges Oral” traz palestras que ele deu e uma delas é sobre livros. Borges diz o seguinte: de acordo com Montaigne, o filósofo, o que a gente tem que procurar é a alegria. Isso também na literatura, procurar um livro que te faça feliz. Quando o autor não consegue isso, o autor fracassou completamente. Ele diz que com “Ulisses”, James Joyce fracassou na literatura. É um livro intolerável, ilegível. Não conheço ninguém, a não ser os irmãos Campos, os concretistas, que foram os que leram ou disseram que leram. Uma literatura bem escrita te traz alegria e felicidade. Não quer dizer que você tem que ficar rindo do livro. É que ao ler o livro, você se comova com ele. Você lê “Madame Bovary”, que não é um livro alegre, mas é muito bonito. “Vidas” Secas é um livro pesado, mas é muito bonito, então você se sente compensado em lê-lo.

Em grandes eventos, como a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), alguns escritores são tratados quase como estrelas, artistas pop. Isso é fruto de um novo público, de uma nova forma das editoras trabalharem...

É fruto de um novo público, de um novo trabalho, dessas feiras. Agora, tem que saber diferenciar. A FLIP é muito interessante, mas a gente a chama de fashion show de literatura porque são, em geral, socialites de São Paulo que açambarcam todos os convites que são postos na internet – e que são caros – e o povo sempre é colocado à margem. O povo de Parati não toma parte, a não ser vendo os escritores pelas ruas e essas coisas. A FLIP é uma coisa para uma classe especial. Eles vão lá e assistem a conversa e saem imediatamente correndo para ir a um restaurante. Nesse país tem uma realização fantástica chamada Jornada de Literatura de Passo Fundo (RS), que acabou de fazer 30 anos. Tem uma tenda imensa onde cabem 5 mil pessoas: estudantes e professores. E tem seis lonas menores onde tem a jornadinha, onde este ano estiveram 18 mil crianças conversando com dezenas de escritores infantis. Vieram os ídolos Ziraldo, Maurício de Souza e outros que, mesmo sem nome, conquistam aquelas crianças. Na parte adulta tem grandes palestras e espaço para perguntas e respostas. Ali realmente você se sente um pop star. Você chega num palco e tem 5 mil pessoas na sua frente, às vezes até brincando: “lindo, lindo!”. Essas pessoas já foram avisadas de quem seriam os autores e quais são os livros e a grande maioria já leu uma parte desses livros. Então, quando chega uma pergunta depois que você falou, é uma pergunta pertinente. Esses professores continuam esse trabalho nas suas escolas. E vem gente do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina. São multiplicadores. A única jornada que não se encerra quando acaba é a de Passo Fundo. Na verdade, é ali que ela se inicia. Em Passo Fundo, o índice de leitura é de 6,5 livros por ano, o que é altíssimo. Na França é 8. Em geral, no Brasil, parece que é 2 e pouco. Não sei, essas estatísticas também são uma chatice. Então, essas coisas contribuem. Agora, é preciso que se modifique o sistema de ensino. E agora está tendo um elemento perturbador, que é a internet. Ninguém sabe e são as teorias mais loucas: “vai acabar com tudo!”. Não vai acabar com nada, é apenas um suporte a mais. Literatura não acaba. O livro já foi escrito na pedra, na madeira, em tijolinhos, papiro. Agora, na internet, o livro talvez dure exatamente mais do que se impresso no papel, entrando agora no Ipad, no tablet.

A partir do livro eletrônico, pode acontecer uma crise com as editoras como a que vem acontecendo com a indústria de discos em razão da troca de música gratuita na internet? Ou seja, o livro eletrônico coloca o mercado editorial e a literatura em crise?
Esse é outro problema para ser resolver. Mas, enquanto o problema não se apresentar, não se resolve. Eu vejo que é um momento muito interessante e todos estão perplexos. Mas o livro não vai acabar, a literatura nunca vai acabar, isso que é o mais importante. É tão repetido isso. Quando chegou o cinema, o teatro ia acabar. Quando chegou a televisão, ia acabar o cinema. A televisão acabou salvando os dois.

No Brasil, um livro quando publicado por uma editora mais conceituada, que tiragem média inicial ele tem?

De três a cinco mil.

Um best-seller vende quanto?
Vinte mil já é bem vendido. Cinquenta mil, 100 mil é um best-seller. Isso se consegue com estes livros de auto-ajuda e os livros estrangeiros que têm aparecido. Brasileiros são raríssimos. O Paulo Coelho, o Luís Fernando Veríssimo conseguem. O resto fica nos 20 mil...

Então se for pra viver como escritor...
Ninguém vive como escritor. O Moacyr Scliar era médico. Rubem Fonseca foi até delegado de polícia. Antônio Torres, publicitário, Ivan Ângelo, jornalista, Márcio de Souza teve todos os empregos possíveis. A gente vai vivendo. Eu morei na Alemanha e conversava com dezenas de escritores e eles eram iguais. Trabalhavam e escreviam os livros. E daí? Qual é o problema? Eu sempre conciliei e pronto. É o meu destino.

No Brasil, são poucos os espaços para a crítica literária e muitas vezes percebe-se no próprio crítico uma certa arrogância na forma de escrever, muitas vezes querendo mostrar que sabe mais de um livro do que o próprio escritor. Como o senhor vê a crítica no país?
Primeiro, não tem mais crítico no Brasil. Não tem, mesmo. Não sou saudosista não. Morreu Wilson Martins, que foi o último. Morreu Agripino Grieco, também o Álvaro Lins. O Antônio Cândido não faz mais Os que souberam realmente analisar uma obra, isentos, esses não têm mais. Hoje tem resenhas curtas e banais. E há um desprezo na mídia pela crítica e pela literatura. A crítica deveria ser aquela que conduz o leitor ao livro ou não. Ela explica que o livro está sendo muito falado, mas não é tudo isso e tal e tal. Ninguém mais consegue fazer isso. O crítico tem que localizar o livro dentro da obra do autor, tem que conhecer, tem que respeitar o autor. Você disse uma verdade. O crítico quer ler o livro que ele gostaria de fazer na cabeça dele, e daí vem o velho chavão: quem sabe faz, quem não sabe critica. Mas é verdade, hoje em dia não tem mais crítica. Meus últimos três ou quatro livros não tiveram nenhuma crítica. Tem release. O que a editora manda eles publicam. Eu acho que a crítica está morta, simplesmente. O que é uma pena.

Qual a importância da Semana Literária do Sesc, da qual senhor esteve participando em várias cidades?

É adorável. Estou indo para cidades que não são as capitais, que são pequenas. Nesses eventos, o escritor vai ao encontro de um público que talvez nunca teve a chance de ver um escritor. Então, quem está levando o escritor está fazendo uma grande tarefa. Pode ser que esse escritor não agrade a plateia, mas a pessoa está lá e vê que quem escreve livros é igual a todo mundo, tem olho, orelha, boca. Isso desmistifica a figura do escritor.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Cesta básica de futilidades


Os atos de vandalismo ocorridos em Londres no início de agosto voltaram a ganhar destaque em uma pequena discussão na Folha de S. Paulo, principalmente entre o (ótimo) colunista Contardo Calligaris e alguns leitores. Em texto do último dia 08, ele retomou o assunto, motivado por alguns e-mail que ele recebeu de algumas pessoas fulas da vida porque Calligaris afirmou no artigo “Grandeza das ‘futilidades’” que “numa sociedade livre, as ‘futilidades’ são gêneros de primeira necessidade, parte da cesta básica”.

Recapitulando a história: depois de um homem ser assassinado pela polícia inglesa em Londres, uma onde de violência, depredação e saques se instaurou por alguns dias na capital da Inglaterra e se espalhou por outras do país. Na visão mais simplista e babaca, irradiada pelas autoridades e a mídia em geral, tudo não passava de simples atos de vandalismo. Para outros, mais coerentes, o assassinato daquele pai de família havia sido o estopim de uma situação crítica deflagrada pelo desemprego, por uma educação escolar e universitária deficiente e pela falta de perspectivas de vida. E mais, pela dificuldade de alguns em ter acesso ás futilidades. Enfim, a revolta seria um claro sinal de que há algo de errado com a sociedade inglesa.

Nesses dois modos de interpretam os recentes episódios, o fato das pessoas que saqueavam estarem furtando celulares, eletrônicos, Ipads e roupas de marca; e não comida, acabou dominando o debate. Para o senso comum, isso seria uma demonstração clara que o que se viu em Londres era puro vandalismo, roubo, caso de polícia. Roubar comida, por exemplo, poderia ser justificado. Roubar um tênis da Nike, não.

Mas é preciso ir mais além nessa lógica, assim como fez Calligaris no seu texto “Grandeza das ‘futilidades”. Segundo ele, vestir determinado tipo de roupas e de tais marcas, usufruir de celulares high-tech, computadores de alta-tecnologia, entre outras coisas do gênero, na sociedade capitalista atual são fundamentais como elementos que favorecem a inserção e a interação social. “Em suma, objetos, aparato e aparências, em sua suposta futilidade, são a chave de nossa liberdade para circular na hierarquia social, entrar em grupos diferentes do grupo no qual nascemos”, escreveu o colunista, que afirma ainda que “os objetos e o aparato são a condição de uma liberdade inédita, porque, hoje, ninguém será barrado na festa porque nasceu num berço humilde – só se ele estiver escolhido o aparato errado”.

É a lógica de que se eu não posso ser, ao menos posso parecer. Se não sou rico, posso aparentar ser rico, usando tal roupa e consumindo determinados objetos que me permitem interagir numa sociedade onde ter bens materiais (“futilidades”, usando o termo de Calligaris) assume cada vez mais importância. E se para parecer igual ao outro seja preciso furtar, que assim seja.

Pode parecer meio esquisito esse negócio de achar que um celular e um tênis bacana podem ser itens de primeira necessidade como a cesta básica de alimentos distribuídos aos mais pobres, digamos, em época de eleição no Brasil. E é esquisito mesmo, mas é totalmente compreensível. Depende do lugar e do tipo de sociedade que se vive. Por exemplo, pra um índio perdido nos confins da selva amazônica, eventualmente ter um adorno com, digamos, uma pena do rabo de um arara azul pode ser uma das coisas mais importantes que ele pode desejar. Para quem vive na cidade, isso não passaria de uma simples bobagem: uma pena de pássaro na cabeça do índio ou no rabo da arara é a mesma coisa. Mas, na sociedade do hipotético índio, isso pode significar status, garantir uma índias a mais ou coisa que o valha. E se as araras azuis estão em extinção e está difícil de encontrar uma, de repente não seria má ideia roubar uma pena de outro índio que eventualmente tem uma, duas ou três penas do rabo de arara azul.

Voltando a falar da Inglaterra (onde o pobre de lá provavelmente se equivale a alguém da classe média baixa aqui no Brasil e não lhe falta comida e nem casa pra morar), eventualmente um Iphone seja o seu desejo imediato de consumo, já que ele possui o necessário para sobreviver, mas não o tal aparelho que o faça se sentir igual aos seus compatriotas que têm à disposição toda a quinquilharia eletrônica moderna. Enfim, itens de primeira necessidade mudam conforme a sociedade.

Ganhador de um prêmio Nobel, o economista indiano Amartya Sen discorre, entre outros assuntos, sobre as “futilidades essenciais” das sociedades atuais em seu excelente livro “Desenvolvimento como liberdade” (publicado originalmente em 1999). Escreveu ele:

“O que se considera ‘necessidade’ em uma sociedade deve ser determinado (...) pelo requisito de que a sua satisfação gere algumas liberdades minimamente requeridas, como por exemplo a capacidade de aparecer em público sem se envergonhar ou de participar da vida da comunidade. Adam Smith expressou a questão da seguinte maneira: artigos de necessidade são, no meu entender, não só os bens indispensavelmente necessários para o sustento da vida, mas tudo o que os costumes do país consideram indecente uma pessoa respeitável, mesmo a mais humilde, não possuir. Uma camisa de linho, por exemplo, não é, rigorosamente falando, uma necessidade da vida. Os gregos e os romanos, suponho, viviam confortavelmente mesmo sem ter linho. Porém, nos tempos presentes, na maior parte da Europa um trabalhador diarista respeitável sentiria vergonha de aparecer em público sem uma camisa de linho, supondo-se que não a ter denota o desonroso grau de pobreza ao qual, presume-se, ninguém pode sucumbir sem má conduta extrema. (...)”. A este pensamento de Adam Smith, o economista Amartya Sen acrescenta que “nessa análise, o enfoque tem de incidir sobre as liberdades geradas pelos bens, e não sobre os bens em si mesmos”.

Acredito que por aí já deu pra entender o porquê do colunista da Folha de S. Paulo defender que furtar “futilidades”, embora errado, é uma atitude compreensível. O que aconteceu em Londres, pode ter sido sim vandalismo, mas o que o motivou foi algo muito mais complexo do que a simples vontade de ver o circo pegar fogo...

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Cândido: pelo prazer de escrever e ler


A Biblioteca Pública do Paraná lançou, em agosto, o primeiro número de seu jornal. Batizado de Cândido, a publicação, como deixa claro em seu editorial, tem o objetivo de deixar “sua marca na cultura paranaense e brasileira” abrindo espaço para a discussão da leitura e da literatura. Para tanto, Cândido “publicará reportagens sobre ações de leitura, mercado editorial, perfis, entrevistas com escritores, tirinhas, ilustrações, caricaturas e inéditos – contos, poemas, crônicas e trechos de romance. Com isso, pretende oferecer ao leitor um panorama rico e abrangente da literatura contemporânea e valorizar a história literária do Paraná”.

E a primeira edição de Cândido já impressiona positivamente. Com um projeto gráfico atrativo, com muitas ilustrações e valorização de espaços em branco nas páginas, visualmente o jornal, de 32 páginas já é um atrativo. E a curiosidade aumenta ainda mais com os temas abordados na primeira edição: destaque para o ensaio e o perfil de Paulo Leminski, principal destaque na capa. Interessante ainda a entrevista com o escritor e crítico paranaense Miguel Sanches Neto e a matéria com a escritora carioca Elvira Vigna. É claro que há muito mais, como um breve perfil do escritor norte-americano Ernest Hemingway e uma reportagem sobre o mercado brasileiro de biografias de músicos brasileiros, para citar só alguns exemplos.

Com 32 páginas, Cândido mostra que tem fôlego para trilhar um caminho de sucesso já percorrido há algum tempo por outro jornal paranaense especializado em literatura, o Rascunho, publicação de periodicidade mensal que já está em sua 137º edição.

Para quem se interessar, o contato com a Biblioteca Pública do Paraná é (41) 3221-4974 e imprensa@bpp.pr.gov.br.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Cheira a espírito adolescente


Nas últimas semanas tive mais alguns motivos para começar a desconfiar de que a meia idade tá batendo na porta da frente enquanto a juventude foge às pressas pela janela dos fundos... E nem é o fato de mais um aniversário estar se aproximando. Tem a ver com o simples fato de que coisas das quais eu gosto estão envelhecendo também.

O primeiro choque de realidade foi quando vi propaganda da exibição do filme “Seven – Sete Pecados Capitais” no canal de televisão TCM, especializado em séries e filmes antigos. . “Seven no TCM? Mas, eu vi esse filme na época de seu lançamento! Tô velho mesmo...”

Outra coisa que tem me lembrado que a vida passa num piscar de olhos são as celebrações dos 20 anos de lançamento do último grande disco de rock, o “Nevermind” do Nirvana. Vinte anos! Parece que foi ontem que entrei na hoje extinta Discomar e comprei a primeira cópia em vinil do álbum que chegou em Marechal Rondon. “Nirvana, mas que diabos é isso?”, todos perguntavam. Nos meus 14 anos eu não fazia muita ideia também, só tinha a certeza que era um barulho diferente de outras coisas barulhentas que meus amigos e eu costumávamos ouvir na época, como Guns n’ Roses, Megadeth, Iron Maiden e Judas Priest. Um barulho diferente... e melhor.

Vinte anos depois, aí estou eu animado outra vez com o disco “Nevermind”, que será relançado no próximo dia 27 em versões superluxo com tudo e muito mais que qualquer fã podia sonhar. E não se trata só de mais do mesmo, já que os pacotes especiais incluem DVD inédito, versões nunca lançadas e mais algumas músicas inéditas. Pra quem saca a importância desse álbum e do Nirvana para a cultura pop, não preciso dizer mais nada...

Chato que a figura chave de toda essa história não vai participar das comemorações. Ao contrário de mim, que envelheço a cada dia, Kurt Cobain para sempre terá 27 anos, já que decidiu estourar os próprios miolos no dia 5 de abril de 1994, deixando uma filha ainda bebê e uma viúva, a partir de então milionária.

Foi-se o homem, nasceu a lenda. A última desse tal rock and roll. E restou “Nevermind”, esse clássico absoluto que, ao ouvi-lo, ainda faz qualquer sujeito de meia idade cheirar a espírito adolescente...

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A nossa Biblioteca Cidadã


Inaugurada há pouco menos de um mês, a Biblioteca Cidadã foi um presente e tanto para o aniversário de Marechal Cândido Rondon. Pequena, mas aconchegante, foi construída ao lado do posto de saúde do bairro São Lucas. A biblioteca foi criada através de parceria entre governo do Estado e prefeitura. Conta com um acervo bem modesto, de cerca de dois mil livros. Mas, em literatura, o que importa é a qualidade e a não a quantidade, não é mesmo?

Livros de literatura que vão de autores clássicos até escritores da nova geração, sejam brasileiros ou estrangeiros; títulos sobre história, política, cinema, música, moda, best-sellers. Está tudo lá, novinho, esperando a visita dos rondonenses. Minha visita ao lugar rendeu: encontrei o livro “Tropicália: uma revolução na cultura brasileira”. Um título que estava ensaiando comprar e que custa a “bagatela” de R$ 140,00. Na biblioteca o empréstimo saiu de graça.

Pergunto para a bibliotecária se o espaço tem sido bem frequentado e ela diz que sim. Minha carteirinha é de número 43: contando desde o dia em que a Biblioteca Cidadã foi inaugurada, dá uma média de dois novos leitores cadastrados por dia. Não chega a ser ruim, mas pode melhorar.

E falando em leitura, a Câmara Brasileira do Livro divulgou dias atrás que o brasileiro está comprando mais livros, motivados, principalmente, pela queda dos preços. Nada muito significativo: uma redução de cerca de 4,5%. Pouco, mas já é alguma coisa. Resultado: no ano passado, comparado com 2009, a venda de livros no Brasil cresceu 13,12%.

Dados da pesquisa indicam ainda que um meio de comercialização que tem crescido bastante é a venda de porta em porta, por catálogo. Por exemplo, a Dona Maria que há tempo vende Avon, enquanto oferece cremes e desodorantes pra sua vizinha Lucinha, agora também aproveita pra incentivá-la a comprar em um mês um livrinho do Dan Brown, no outro mês um livrinho do Paulo Coelho e assim vai.

Só que não adiante discutir. Livro no Brasil é caro e são poucos que têm grana ou disposição de comprar. Daí a importância das bibliotecas públicas, como a recém inaugurada em Marechal Cândido Rondon. Mas de nada adianta construir bibliotecas se as pessoas não tiverem o prazer da leitura. Daí a importância dos pais e professores estimularem a paixão pelos livros. Mas nada de enfiar livros goela abaixo da molecada, ainda mais se forem xaropices do José de Alencar. Obrigar adolescente a ler “Iracema” e “Senhora” é matar a vontade de qualquer um de ler para o resto da vida!

Acredito que é negócio é apresentar livros bacanas de autores que entrem em sintonia com as ideias da molecada de hoje em dia. Funcionou comigo, talvez funcione com os outros também. Despertados para o prazer da leitura, terão o resto da vida para entender e apreciar um Machado de Assis da vida. Também tem que cativar pelo exemplo e sem aquele papo chato de que ler é importante pra aprender mais sobre o mundo, pra escrever melhor e bla blá blá.

O amor pela leitura surge quando ela é descompromissada, sem outro objetivo maior do que o puro prazer proporcionado pela companhia de um livro. A literatura basta por si só.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Orgasmo Carlos: Viagra, sexo e rock and roll


O poder do Viagra não tem limites. Praticamente qualquer homem agora anda de cabeça em pé, sem essa de andar cabisbaixo por causa da impotência. E a bendita pílula azul tem dado novo fôlego também em outras áreas. Só isso explica a disposição do tremendão Erasmo Carlos, que aos 70 anos está prestes a lançar um disco totalmente dedicado aos prazeres da carne. Sacanagem pura da capa (imagem acima) até o último verso do álbum. É o legítimo Viagra, sexo e rock and roll!

“Sexo”, o novo disco do Orgasmo Carlos, digo, Erasmo Carlos, chega às lojas e na internet nos próximos dias. E pelo que deu pra ouvir de algumas canções previamente disponibilizadas, periga do Tremendão da terceira idade, quem diria, ter feito um dos melhores discos de rock dos últimos tempos no Brasil.

Aliás, de um tempinho pra cá, Erasmo Carlos tem sido resgatado do limbo pela geração mais nova da música brasileira, corrigindo uma injustiça tremenda contra um dos maiores cantores do país. Parceiro de longa data de Roberto, Erasmo sempre foi o Carlos menos famoso dos dois. Embora já durante a Jovem Guarda muitos acreditassem que o Tremendão possuía qualidades bem mais interessantes do que o brasa Roberto Carlos. Se for comparar no estágio atual da carreira dos dois, certamente o é.

Para fazer “Sexo” – o disco, e não o ato físico em si -, Erasmo cercou-se de bambas como Arnaldo Antunes, Nelson Motta, Adriana Calcanhoto e Chico Amaral, com quem assina algumas músicas. E o resultado dessa suruba criativa é um disco que “traz a alegria das transas loucas (...) nas mais impossíveis posições (...) para levantar os espíritos e sacudir as libidos”, como descreveu a escritora Fernanda Young no release assinado por ela. Para Fernanda, “Sexo com Erasmo é doce, divertido e apaixonante. Eu não fiz, mas ouvi. E como é bom escutar um homem tratar de sexo assim, sem pudor porém com ternura, sem medo de se expor porém delicadamente”.

Frontal, de pé, por trás ou de lado
A hidra às voltas com o dragão
Tesoura, fechadura ou de quatro
Em que posição?
Coqueirinho ajoelhado
Trapézio ou carrinho de mão
Gangorra de cabeça pra baixo
Em que posição?
Ficamos de mãos dadas no improvável caranguejo
Mas foi com a chave de ouro que o namoro começou
No 69 a gente deu nosso primeiro beijo
O que faremos hoje com nosso desejo?
Onde colocar o amor?
O enroscado da trepadeira
Picada de escorpião
Guindaste, tartaruga ou vaqueira
Em que posição?
Fênix na caverna vermelha
Noventa graus de conexão
Carrossel ou chão de estrelas
Em que posição?
Já experimentamos quase o Kama Sutra inteiro
Até contorcionismo a gente às vezes praticou
A borboleta em concha fez você gozar primeiro
Mas no tradicional papai-mamãe
Foi que a gente mais arrebentou
O parafuso, a ponte e o arco
Da rã, do carangueijo ou do cão
Lótus, vai e vem, tiro ao alvo
Em que posição?


Esse é o Tremendão cantando na música “Kamasutra”, apenas uma preliminar do que vem com o “Sexo” completo. Muito safadinho esse Orgasmo Carlos...

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Punk is not dead: Londres está queimando


Desde o final de semana, os ingleses e o mundo assistem atônitos os atos de violência, vandalismo, furto e destruição que tomaram conta das ruas de Londres após um homem de 29 anos ter sido morto em uma operação policial. A barbárie se espalhou para outras cidades, enquanto autoridades políticas e policiais agem como moscas-tontas para tentar conter a rebelião, sem muito sucesso até o momento.

Também surpreende a desorientação com que a imprensa trata do assunto. Como de costume, a horda de troglodistas que está levando pânico às ruas são simplesmente tratados como vândalos se divertindo em período de férias escolares. Não que não sejam, mas a classificação é pobre e burra demais, por não se abrir à percepção dos reais motivos de tamanha revolta.

Nos noticiários de hoje pela manhã, pela primeira vez as notícias sobre as manifestações vieram com um pouco mais de consistência informativa. Embora mascarados, começaram a ser identificados esses baderneiros atém então sem rosto. Enfim, os ingleses estão se dando conta de que a morte que teria dado início a toda essa confusão foi apenas o estopim que detonou um cenário sócio-econômico pra lá de explosivo.

Atualmente, cerca de 1 milhão de jovens ingleses estão desempregados. Grande parte deles não tem acesso ao sistema educacional. Nesse ambiente, drogas e sexo fácil se proliferam, motivados pela alienação e total descrença em um futuro melhor. Ao mesmo tempo, essa massa de homens-nada é bombardeada pela propaganda que incentiva e associa ao status social o consumo de roupas caras, celulares e aparelhos eletrônicos sofisticados, por exemplo, sem que ela tenha qualquer possibilidade de adquiri-los. Uma geração perdida que poucos turistas enxergaram quando foram abanar bandeirinhas da Inglaterra pelas ruas de Londres durante o casamento do príncipe William e a plebeia Kate.

Impossível não fazer a ligação com a situação vivida esta semana na Inglaterra como o que acontecia naquele país em meados dos anos 70, e que ajudou a formatar um dos movimentos político-culturais mais significativos do século XX: o punk.

Há cerca de 35 anos, os ingleses viviam situação semelhante à de hoje. Escreveu Paul Friedlander, no seu livro “Rock and Roll: uma história social” (Editora Record, 2002, p. 354) que naquele cenário:

“Surgiu um crescente segmento de jovens de classes menos favorecidas que se mostravam insatisfeitos com a falta de oportunidades econômica e educacional na Inglaterra. Empregos e salários decentes não estavam disponíveis e o acesso às escolas só era permitido às classes mais privilegiadas, forçando vários jovens operários a desistir da educação. Esta juventude desiludida cada vez mais numerosa vislumbrava um futuro de subsistência à custa do sistema de previdência social britânico. Os jovens perceberam que para eles não havia futuro, e por isso se revoltaram”.


Dessa massa de inconformados da década de 70, muitos foram para as ruas protestar, fazer greves, promover quebra-quebras. Outros, além disso, também manifestaram sua indignação através da arte (principalmente o rock) e do estilo de vida punk que tinham como uma das premissas básicas a revolta contra a esquerda e a direita e um niilismo latente que se manifestava na falta de respeito ao patrimônio e desobediência às autoridades em favor da total liberdade individual.

Duas entre as centenas de bandas punks inglesas surgidas na década de 70 são emblemáticas: os Sex Pistols e o Clash. A primeira, uma verdadeira máquina de caos, que tinha como premissa a ofensa a tudo e a todos e que musicalizava e verbalizava a sua revolta em canções como “Anarchy in the UK” (Não sei o que quero mas/Eu sei como conseguir/ Eu quero destruir todos os transeuntes porque /Eu quero ser a anarquia) ou “No Feelings” (Sem sentimentos por ninguém/Exceto por mim mesmo, pela minha bela pessoa, querida).

Mas é na canção “God Save The Queen” que os Sex Pistols, mais do que provocar a ira da família real inglesa e grande parte da população da Inglaterra, conseguiu fazer um retrato realista e cruel da sociedade britânica da metade dos anos 70:

“Deus salve a rainha/ O regime fascista dela/ Fez de você um retardado/ Uma bomba H em potencial/ Deus salve a rainha/ Ela não é um ser humano/ Não há futuro/ Nos sonhos da Inglaterra/ (...) Quando não há futuro/ Como pode haver pecado?/ Nós somos as flores na lixeira/ Nós somos o veneno na sua máquina humana/ Nós somos o futuro/ Seu futuro”

Mais profícua e consistente no discurso rebelde era a banda Clash, que em várias canções pregou justamente a utilização da força para, se não mudar, pelo menos manifestar a indignação à situação vivida na época. O próprio nome do grupo (Clash também significa confronto) já dava a tônica da postura do grupo, que não deixava qualquer dúvida dos seus ideais em canções como a visionária “London’s Burning” (Londres está queimando com o tédio agora), “Hate and War” (Ódio e guerra/Eu tenho vontade de sobreviver/ Eu engano se eu não conseguir ganhar/ Se alguém me deixa de lado/ Eu chuto à minha volta) ou “Guns of Brixton” (Quando a lei entrar à força/ Como você vai agir?/ Deitado no chão/ Ou esperando uma briga mortal/ Vocês podem nos esmagar/ Vocês podem nos machucar/ Mas vão ter que responder para/ Os atiradores de Brixton).

E se o lema do Clash era o confronto, a banda fez da música “London Calling” a convocação para a pancadaria:

“Londres chamando todas as cidades distantes/ Agora a guerra está declarada e a batalha começa/ Londres chamando o submundo/ Saiam todos do armário, garotos e garotas/ (...) A era do gelo está vindo, o sol está sumindo/ Máquinas param de funcionar e o trigo está rareando/ Um erro nuclear mas não temo/ Porque Londres está sendo inundada e eu/ Eu vivo perto do rio”

O movimento punk inglês original teve uma existência efêmera que pode ser considerada entre 1975-1979, com uns anos a mais ou menos, dependendo do ponto de vista. Mas no geral foi isso. O punk, acreditava-se, havia virado coisa de butique. E as próprias ideias e estímulos ao confronto, tão presentes nas canções do Sex Pistols e do Clash, eram vistos como uma poesia datada. Hoje, vendo o que acontece em Londres, fica a sensação de que elas eram proféticas.

A horda que hoje põe cidades inglesas em pânico talvez nem se dê conta que um dia existiu o punk e bandas como Sex Pistols e Clash. Talvez seus inspiradores da rebeldia sejam os gagsta rappers, autores anarquistas do momento ou coisa assim. Mas, as motivações e modos de agir entre aquela e a atual geração de descontentes da sociedade inglesa são as mesmas. Mais do que o discurso, é a manifestação violenta que é usada para chamar a atenção sobre uma situação que já estava em ebulição e que definitivamente entornou o caldo no último final de semana.

Craig O’Hara escreveu no livro “A Filosofia do Punk: mais do que barulho” (Radical Livros, 2005, p. 92-93) que “não é a devoção a um conjunto fixo de normas de protesto que pode mudar a sociedade, mas o uso apropriado de táticas para alcançar objetivos. Às vezes a violência é necessária, às vezes ela é contraprodutiva”.

Antes que me acusem de apologista da violência, que fique claro que nem de longe pretendo fazer a defesa da violência ou dizer que acho justo ou não a pancadaria que está comendo solta em Londres. Tento apenas mostrar que por trás da atitude das autoridades e da mídia de reduzir a interpretação aos protestos a simples atos de vândalos que depredam e roubam roupas de grife e celulares pode estar uma tentativa de esconder causas bem mais profundas, que talvez nem os próprios manifestantes consigam explicar.

Talvez ajam apenas por impulso, alimentados por um ódio há muito guardado e que tem origem na sensação de alienação social e econômica em que vivem. E nessas horas, é perfeitamente compreensível a máxima punk de que “se você não tem nada, então não tem nada a perder”. Para quem vive assim, é até meio que natural sair às ruas com pedras e paus nas mãos porque, como profetizou o grupo Clash, “a guerra está declarada” e “Londres está chamando”.