quinta-feira, 22 de agosto de 2013

“Cartas na rua”: um reencontro com o Velho Buk




"Comecei o processo de descompressão. Me embebedei e permaneci mais bêbado que um gambá cagado no Purgatório. (...) Quando voltei a mim, estava na sala do meu apartamento, cuspindo no tapete e apagando cigarros nos pulsos, dando risada. Louco como a lebre de Alice no País das Maravilhas.”
- Charles Bukowski, no romance “Cartas na rua”

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Após um longo tempo distante, foi bom voltar a ler algo de Charles Bukowski (1920-1994). Desta vez, tirei da estante “Cartas da rua” e foi como reencontrar um velho amigo.

Tenho uma dívida gigantesca com Charles Bukowski, porque foi através dele que, na adolescência, voltei a acreditar que literatura era uma coisa bacana.

Um devorador de livros da coleção Vagalume e outros do gênero no final da infância, as aulas de literatura no 2º grau (hoje ensino médio) me fizeram ter horror aos livros. As malditas obras de vestibular que nos enfiavam goela abaixo eram detestáveis. Por sorte havia os resumos. Melhor tomar injeção na testa do que ler a maioria dos livros a que éramos obrigados no colégio.

Havia exceções, como o escritor Aluísio Azevedo, brilhante em “O Cortiço” e “Casa de Pensão”. Machado de Assis eu mais desgostava do que gostava, pois era burro demais à época para ler as obras dele nas entrelinhas, que é maneira certa de desfrutá-las, como aprendi mais tarde. Mas nada era motivo de horror maior do que o fresco do José de Alencar e suas virgens de lábios de mel. Detestável, nauseante.

Se livro de adulto era esse mundo chato que a escola nos enfiava goela abaixo, então adeus literatura. Mas um dia caiu em minhas mãos o livro “Crônicas de um amor louco”, de Charles Bukowski. Foi a descoberta de um novo mundo. Então era possível escrever palavrão em livro, contar histórias de bebedeiras, brigas, sexo, escrever de forma simples e ainda assim ser um escritor respeitado?

Sim, era possível e, melhor de tudo, havia tantos outros escritores interessantes nessa mesma linha cujos livros fazem da leitura uma das atividades mais prazerosas que uma pessoa pode ter. Hoje, gosto e aconselho a leitura de muitos escritores clássicos, mas um pouco de porralouquice de vez em quando não faz mal a ninguém...



Charles Bukowski

“Cartas na rua” é o primeiro romance de Charles Bukowski, publicado em 1971. Nele, o personagem Henry Chinaski, alter ego do autor presente em tantas de suas histórias, é um funcionário dos Correios que detesta o emprego. Enquanto gasta a vida nesse trabalho que “começou como um erro”, Chinaski também vive relacionamentos com mulheres loucas, tem uma filha, não desiste de arriscar a sorte apostando em corridas de cavalos e vive esculachando e sendo esculachado pelos chefes. Tudo isso para perceber que, passados 11 anos depois de ter começado a trabalhar nos Correios, não tinha nem dez centavos a mais do que quando entrou no serviço.

O livro foi inspirado na própria experiência do autor, que na década de 1950 trabalhou como funcionário dos Correios dos Estados Unidos. A princípio um serviço temporário que acabou durando mais de uma década. Bukowski detestou tanto o emprego que decidiu escrever m livro sobre ele.

A edição brasileira mais recente de “Cartas na rua” foi publicada em 2011 pela editora L&PM, em formato de bolso. A editora ainda tem em seu catálogo os demais romances de Charles Bukowski: “Factótum” (1975), “Mulheres” (1978), “Misto-Quente” (1982), “Hollywood” (1989) e “Pulp” (1994). Também estão publicados pela L&PM livros de contos, dos quais recomendo “Notas de um velho safado” e, obviamente, “Crônicas de um amor louco”. Para quem se interessar ainda foram publicados no País alguns de seus livros de poesia.

Charles Bukowski nasceu na Alemanha, mas ainda criança mudou-se com a família para os Estados Unidos. Morreu de leucemia aos 73 anos, em Los Angeles (EUA), no dia 9 de março de 1994.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O Circo do Dr. Lao



Um cachorro feito de plantas. Uma serpente marinha que mede 25 metros e fala. Uma esfinge, um unicórnio, um sátiro, uma sereia, uma tartaruga bicéfala e uma quimera. Um lobisomem que se transforma em uma mulher de 300 anos. Apolônio de Tiana, um taumaturgo contemporâneo de Cristo. Medusa, que no lugar de cabelo tinha cobras e que transformava em pedra quem olhasse diretamente para seus olhos. E o Dr. Lao, um velho chinês dono do circo onde são apresentadas essas criaturas e muitas outras, tão incomuns que muitos duvidam da existência delas.

Escrito pelo jornalista estadunidense Charles G. Finney (1905-1984) e publicado em 1935, “O Circo do Dr. Lao” é um dos maiores clássicos da literatura fantástica do século XX. Em 1964, foi transformado em filme dirigido George Pal, que recebeu no Brasil o título de “As Sete Faces do Dr. Lao”, o mesmo nome dado ao livro em edições brasileiras mais antigas. Em 2011, a Editora Leya relançou o livro no país, mas com o título de “O Circo do Dr. Lao”, uma tradução fiel ao original em inglês.

Cartaz do filme "As Sete faces do Dr. Lao", de 1964

A história se passa em 03 de agosto de algum ano entre o final da década de 1920 e início dos anos 30, na pequena e tranquila cidade de Abalone, no Arizona (EUA). Na edição daquele dia, o jornal A Tribuna Matutina de Abalone publicou um anúncio sobre um circo bastante diferente que estava chegando à cidade. A propaganda garantia que “aquele circo mostraria animais que nenhum homem já tinha visto; bestas mais ferozes que todos os sonhos de ferocidade; serpentes mais ardilosas que toda a concepção de astúcia; híbridos mais estranhos que todos os pesadelos da fantasia”.

Curiosos em conhecer essas criaturas jamais vistas em Abalone, os moradores se reúnem na rua principal para assistir ao desfile que exibiria algumas das atrações. Surpresos, homens, mulheres e crianças dividem-se entre o espanto e a incredulidade. “Quando o desfile passou diante dele, o sr. Etaoin (o revisor do jornal da cidade) achou graça, imaginando se seus olhos estariam funcionando direito”. Apenas três carroças puxadas por animais tão esquisitos quanto aqueles que estavam dentro das grades. O povo até discutia se dentro de uma das jaulas estaria um homem, um urso ou um russo?

Nesse momento, o leitor já está tão instigado quanto os habitantes de Abalone para conhecer o circo.

A Medusa, que transforma em pedra quem olhar diretamente para seus olhos

Quando as apresentações iniciam, aquilo que já era estranho se torna definitivamente bizarro. Kate – descrita como uma mulher gorda –, ignora os avisos do Dr. Lao, olha diretamente nos olhos da Medusa e é instantaneamente petrificada. Foi transformada em calcedônia maciça: “uma das melhores pedras de construção que existem”, como atestou um geólogo.

Agnes Birdson, a professora de inglês do ginásio que se achava calma e inteligente, é seduzida pelo sátiro, “talvez a figura mais encantadora da antiga mitologia politeísta grega. Combinando as formas de homem e bode, sua constituição sugere fertilidade, uma vez que tanto o homem como o bode são animais de extraordinária atividade sexual”.

Sátiro: meio homem, metade bode

A repórter da Tribuna Matutina achou que havia conseguido uma grande reportagem ao entrevistar o Dr. Lao, o que era nada perto do que fez o Sr. Etaoin: entrevistou a serpente marítima.

A COBRA: Por que me olhas assim? Tu e eu nada temos em comum senão o ódio recíproco.
ETAOIN: Tu me fascinas. Mas por que fazes tua cauda zumbir como uma cascavel?
A COBRA: Por que não? É meu atavimento predileto.
ETAOIN: Seria possível que a compulsão instintiva que me faz procurar uma árvore quando um cão late para mim seja a mesma que te faz chacoalhar quanto te alarmas?
A COBRA: Não. Tua compulsão nasce do medo. A minha do ódio. Teu instinto é de covardia. O meu, de contra-ataque. Tu desejas fugir. Eu, revidar. Tens medo da tua própria sombra. Eu nada receio.
ETAOIN: O deus que te deu bravura deu-me astúcia.
A COBRA: Eu não trocaria uma pela outra.

O escritor Charles G. Finney serviu o Exército norte-americano na China entre 1927 e 1929. Desse contato com a cultura e a filosofia orientais é que o autor afirmava ter surgido a inspiração para criar “O Circo do Dr. Lao” e seus personagens inacreditáveis, como o cão-das-sebes, “essa criatura soberba que não é planta nem animal, mas uma mescla perfeita de ambas. (...) Esse cão, que não era produto de experiências e de erros, a quem faltava luxúria, um ser isento de temores e instintos ancestrais. (...) Será esse cão uma alusão ao objetivo da vida?”.

Cena do filme "As Sete Faces do Dr. Lao"

Um das críticas feitas à adaptação do livro para o cinema é que o roteiro do filme transforma a obra em uma metáfora da vitória do bem sobre o mal. Nada mais distante da essência do livro, que em momento algum se presta a pregar moralismos de qualquer tipo. A ausência de julgamentos e a afirmação da individualidade é o que ganha evidência no “Circo do Dr. Lao”.

Em uma das passagens finais do livro, no auge do espetáculo onde o Satã Mekratrig domina o picadeiro, Agnes Birdson, a professora de inglês que acreditava ser calma e inteligente, revoltada questiona o Dr. Lao por que o símbolo do mal surge em todas as cenas do circo, ao que ele responde:

“O mundo é a minha ideia. É esse o mundo que eu lhes apresento. Tenho meu próprio sistema de pesos e medidas e meu próprio quadro de valores. A senhora tem o direito de ter o seu”.

Que cada um entenda o sentido disso como quiser...

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Assista ao filme “As Sete Faces do Dr. Lao” AQUI.


terça-feira, 6 de agosto de 2013

Carter e o Diabo



 

Carter, que agora tinha maquinado um plano completo, olhou fixo por sobre o ombro de Houdini. Houdini virou-se e viu que ele olhava para o leão, o qual como se satisfeito com o espancamento de Mysterioso, estava tranquilo, a ponta da língua para fora, as patas entre as grades da jaula. Houdini olhou para o palco. De novo para o leão. Olhou para Carter, que olhava para os acessórios deixados no palco com um interesse de proprietário, e Carter pensou alto:
- Faça-me a atração principal. Que eu faça o trabalho para o qual nasci.

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Um livro com um título bacana, uma sinopse atraente, uma bela capa, lançado por uma editora respeitável e que estava à venda por apenas R$ 4,90 dias atrás em uma grande livraria em Curitiba. Foi assim, como num passe de mágica, que tomei conhecimento da obra “Carter e o Diabo”, livro de estreia do escritor estadunidense Glen David Gold lançado em 2002 e que ganhou uma edição brasileira em 2004 pela Editora Record.

Reunindo personagens reais em situações fictícias, a história se desenrola quase toda na cidade de São Francisco (EUA), na década de 1920. O Carter do título do livro é Charles Joseph Carter, também conhecido como “Carter, o Grande”. Nascido em 1874 e morto em 1936, ele é considerado um dos maiores mágicos dos Estados Unidos à época. 

O verdadeiro mágico Charles Carter (1874-1936)

No livro de Gold, Carter é suspeito de ter assassinado o presidente Warren Gamaliel Harding poucas horas depois deste ter participado de um número arriscado do espetáculo do mágico. Na vida real, Harding morreu em condições misteriosas em 02 de agosto de 1923, no hotel onde estava hospedado na cidade de São Francisco.

Suspeito do crime, a trama principal do romance desenvolve-se com o mágico sendo perseguido por agentes federais, entre eles o atrapalhado Jack Griffin. As escapadas de Carter diante da lei são tão misteriosas quanto àquelas que ele executa em suas apresentações, o que garante um ritmo frenético de leitura. Carter ainda precisa lidar com um mágico rival, o demente e arrogante Mysterioso!

Presidente dos EUA Warren Gamaliel Harding morreu em circunstâncias misteriosas em 1923

O clima de thriller policial, contudo, é interrompido pelos saltos temporais feitos pelo autor, que não deixa de descrever várias fases da vida de Carter, passando pela sua infância e o início de seu envolvimento com os segredos da mágica até os seus anos de formação quando viajou por vários países do mundo apresentando truques que encantaram inclusive vários chefes de Estado. No romance, até mesmo para piratas o mágico teve que atuar!

Além de Carter e do presidente Harding, outros personagens reais desfilam pelo livro. É o caso, entre outros, de Harry Houdini (1874-1926), ilusionista de grande fama nos Estados Unidos por suas fugas “impossíveis” de correntes e algemas, e Max Friz, fundador da BMW. Outro nome importante na história (no livro e na vida real) é Philo Farnsworth, o inventor da televisão.

Philo Farnsworth, inventor da televisão

Com tantos nomes interessantes e descrições pormenorizadas da cidade de São Francisco, mais do que criar um romance policial, Glen David Gold também consegue traçar um painel de uma época marcada por diversas invenções e costumes que ficariam marcados na história do século XX. 

Mas, ao mesmo tempo, também assinala o fim da era dourada dos espetáculos ao vivo de mágica e de outras formas de entretenimento que perdiam cada vez mais espaço para o cinema e, algumas décadas depois, também para a televisão, que se popularizou na década de 1950.

Com uma mistura acertada entre realidade e ficção, “Carter e o Diabo” é uma leitura prazerosa que leva o leitor para um universo onde nem tudo é o que parece ser...

Pôster usado por Charles Carter para divulgar seu espetáculo na década de 1920

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Empolgante e repleto de ação, “Carter e o Diabo” – o título do livro foi tirado de um truque no qual Charles Carter duelava com o capeta para ver quem realizava a melhor mágica – pode virar filme em breve através da Warner Bros., inclusive com Johnny Deep no papel principal.