quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Cesta básica de futilidades


Os atos de vandalismo ocorridos em Londres no início de agosto voltaram a ganhar destaque em uma pequena discussão na Folha de S. Paulo, principalmente entre o (ótimo) colunista Contardo Calligaris e alguns leitores. Em texto do último dia 08, ele retomou o assunto, motivado por alguns e-mail que ele recebeu de algumas pessoas fulas da vida porque Calligaris afirmou no artigo “Grandeza das ‘futilidades’” que “numa sociedade livre, as ‘futilidades’ são gêneros de primeira necessidade, parte da cesta básica”.

Recapitulando a história: depois de um homem ser assassinado pela polícia inglesa em Londres, uma onde de violência, depredação e saques se instaurou por alguns dias na capital da Inglaterra e se espalhou por outras do país. Na visão mais simplista e babaca, irradiada pelas autoridades e a mídia em geral, tudo não passava de simples atos de vandalismo. Para outros, mais coerentes, o assassinato daquele pai de família havia sido o estopim de uma situação crítica deflagrada pelo desemprego, por uma educação escolar e universitária deficiente e pela falta de perspectivas de vida. E mais, pela dificuldade de alguns em ter acesso ás futilidades. Enfim, a revolta seria um claro sinal de que há algo de errado com a sociedade inglesa.

Nesses dois modos de interpretam os recentes episódios, o fato das pessoas que saqueavam estarem furtando celulares, eletrônicos, Ipads e roupas de marca; e não comida, acabou dominando o debate. Para o senso comum, isso seria uma demonstração clara que o que se viu em Londres era puro vandalismo, roubo, caso de polícia. Roubar comida, por exemplo, poderia ser justificado. Roubar um tênis da Nike, não.

Mas é preciso ir mais além nessa lógica, assim como fez Calligaris no seu texto “Grandeza das ‘futilidades”. Segundo ele, vestir determinado tipo de roupas e de tais marcas, usufruir de celulares high-tech, computadores de alta-tecnologia, entre outras coisas do gênero, na sociedade capitalista atual são fundamentais como elementos que favorecem a inserção e a interação social. “Em suma, objetos, aparato e aparências, em sua suposta futilidade, são a chave de nossa liberdade para circular na hierarquia social, entrar em grupos diferentes do grupo no qual nascemos”, escreveu o colunista, que afirma ainda que “os objetos e o aparato são a condição de uma liberdade inédita, porque, hoje, ninguém será barrado na festa porque nasceu num berço humilde – só se ele estiver escolhido o aparato errado”.

É a lógica de que se eu não posso ser, ao menos posso parecer. Se não sou rico, posso aparentar ser rico, usando tal roupa e consumindo determinados objetos que me permitem interagir numa sociedade onde ter bens materiais (“futilidades”, usando o termo de Calligaris) assume cada vez mais importância. E se para parecer igual ao outro seja preciso furtar, que assim seja.

Pode parecer meio esquisito esse negócio de achar que um celular e um tênis bacana podem ser itens de primeira necessidade como a cesta básica de alimentos distribuídos aos mais pobres, digamos, em época de eleição no Brasil. E é esquisito mesmo, mas é totalmente compreensível. Depende do lugar e do tipo de sociedade que se vive. Por exemplo, pra um índio perdido nos confins da selva amazônica, eventualmente ter um adorno com, digamos, uma pena do rabo de um arara azul pode ser uma das coisas mais importantes que ele pode desejar. Para quem vive na cidade, isso não passaria de uma simples bobagem: uma pena de pássaro na cabeça do índio ou no rabo da arara é a mesma coisa. Mas, na sociedade do hipotético índio, isso pode significar status, garantir uma índias a mais ou coisa que o valha. E se as araras azuis estão em extinção e está difícil de encontrar uma, de repente não seria má ideia roubar uma pena de outro índio que eventualmente tem uma, duas ou três penas do rabo de arara azul.

Voltando a falar da Inglaterra (onde o pobre de lá provavelmente se equivale a alguém da classe média baixa aqui no Brasil e não lhe falta comida e nem casa pra morar), eventualmente um Iphone seja o seu desejo imediato de consumo, já que ele possui o necessário para sobreviver, mas não o tal aparelho que o faça se sentir igual aos seus compatriotas que têm à disposição toda a quinquilharia eletrônica moderna. Enfim, itens de primeira necessidade mudam conforme a sociedade.

Ganhador de um prêmio Nobel, o economista indiano Amartya Sen discorre, entre outros assuntos, sobre as “futilidades essenciais” das sociedades atuais em seu excelente livro “Desenvolvimento como liberdade” (publicado originalmente em 1999). Escreveu ele:

“O que se considera ‘necessidade’ em uma sociedade deve ser determinado (...) pelo requisito de que a sua satisfação gere algumas liberdades minimamente requeridas, como por exemplo a capacidade de aparecer em público sem se envergonhar ou de participar da vida da comunidade. Adam Smith expressou a questão da seguinte maneira: artigos de necessidade são, no meu entender, não só os bens indispensavelmente necessários para o sustento da vida, mas tudo o que os costumes do país consideram indecente uma pessoa respeitável, mesmo a mais humilde, não possuir. Uma camisa de linho, por exemplo, não é, rigorosamente falando, uma necessidade da vida. Os gregos e os romanos, suponho, viviam confortavelmente mesmo sem ter linho. Porém, nos tempos presentes, na maior parte da Europa um trabalhador diarista respeitável sentiria vergonha de aparecer em público sem uma camisa de linho, supondo-se que não a ter denota o desonroso grau de pobreza ao qual, presume-se, ninguém pode sucumbir sem má conduta extrema. (...)”. A este pensamento de Adam Smith, o economista Amartya Sen acrescenta que “nessa análise, o enfoque tem de incidir sobre as liberdades geradas pelos bens, e não sobre os bens em si mesmos”.

Acredito que por aí já deu pra entender o porquê do colunista da Folha de S. Paulo defender que furtar “futilidades”, embora errado, é uma atitude compreensível. O que aconteceu em Londres, pode ter sido sim vandalismo, mas o que o motivou foi algo muito mais complexo do que a simples vontade de ver o circo pegar fogo...

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