terça-feira, 11 de outubro de 2011
Salinger: uma vida
Escrever a biografia de um escritor avesso à publicidade e entrevistas, extremamente zeloso em restringir o acesso ao público sobre o que se passava em sua vida particular e, ainda mais, que ficou praticamente recluso em sua casa em uma pequena cidade por mais da metade de sua vida. Uma tarefa difícil, mas não impossível, e foi esta a que se dedicou o estadunidense Kenneth Slawenski, que em 2004 criou o projeto DeadCaulfields.com, um site totalmente dedicado à vida do escritor J. D. Salinger. Após sete anos de intensa pesquisa, Slawenski finalizou “Salinger: uma vida”, biografia publicada originalmente em 2010, logo após a morte do autor do clássico “O Apanhador no Campo de Centeio”, ocorrida em 27 de janeiro do ano passado. No Brasil, a obra acaba de ser lançada pela editora Leya, com tradução de Luis Reyes Gil.
Jerome David Salinger é um dos maiores escritores do século XX. Nascido em Nova York em 1º de janeiro de 1919, tornou-se famoso em 1951 com a publicação de “O Apanhador no Campo e Centeio”, uma novela sobre Holden Caulfield, um adolescente expulso da escola que perambula por Nova York. Sucesso imediato quando lançado, considera-se hoje que o livro teve uma grande influência no fenômemo da adolescência rebelde da sociedade norte-americana da década de 1950, ao lado da geração beat (que Salinger criticava!), do surgimento do rock and roll e de filmes como “O Selvagem” e “Juventude Transviada”, estrelado por Marlon Brando e James Dean, respectivamente.
Antes mesmo do enorme sucesso de seu primeiro livro, Salinger era considerado um escritor promissor, tanto é que já era tratado de modo diferenciado pela famosa revista literária The New Yorker. Mas, antes de chegar até as páginas da famosa publicação, muitos contos do escritor foram editados em revistas de menor importância dos Estados Unidos. O segundo livro de Salinger é “Nove Histórias”, uma coletânea de contos publicada em 1953. Além deste e de “O Apanhador no Campo de Centeio”, Salinger publicou apenas outros dois livros: “Franny e Zoey” (1961) e “Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira & Seymor: uma introdução” (1963), que traziam textos anteriormente publicados em forma de contos pela The New Yorker, todos abordando os personagens da incomum família Glass.
O último texto publicado por Salinger foi “Hapworth 16, 1924”, que saiu também nas páginas da New Yorker em 1965. O conto, mais um sobre a família Glass, foi duramente criticado. Desde então, Salinger, com apenas 46 anos, desistiu de publicar e cada vez mais se esforçou para viver uma vida em total anonimato na sua casa na pequena cidade de Cornish, localizada a cerca de 380 quilômetros de Nova York, para onde se mudara em 1952. Avesso à mídia, recebendo em sua casa poucos amigos, o que Salinger fez até o fim de sua vida foi uma grande incógnita, fato que somente alimentou o mito em torno do escritor.
Na biografia que escreveu, Slawenski se esmera em revelar os motivos que levaram Salinger a se afastar cada vez mais do convívio público. Engana-se, por exemplo, quem pensa que o “fracasso” do último conto do escritor tenha tido maior peso na decisão dele de deixar de publicar. Ao longo do livro, Slawenski resgata, além da trajetória profissional de Salinger - um dedicado autor que exercia controle total sobre sua obra, desde a edição de uma simples vírgula até a capa de seus livros -, também a vida familiar e, principalmente, a jornada espiritual do escritor.
Instigante nesse sentido, por exemplo, é o capítulo em que Slawenski aborda a experiência de Salinger como combatente da Segunda Guerra Mundial, onde participou da famosa batalha do Dia D (06 de junho de 1944, na França) e os longos meses de combate que se seguiram até o fim do conflito, em 1945. Como não podia deixar de ser, os horrores da guerra, a morte violenta de amigos em campos de batalha, e a depressão que acometeu incontáveis soldados anos depois também afetaram profundamente a vida do escritor.
Desde seus primeiros textos, Salinger já trazia fortes traços de uma religiosidade, que do mundo real se transportava para a sua escrita e se manifestava em epifanias redentoras nas vidas de seus personagens. Conforme Slawenski, Salinger entendia cada vez mais que escrever era uma forma de oração. “Depois de O Apanhador no Campo de Centeio, o foco da ambição de Salinger mudou e ele se dedicou a produzir ficção incrustada de religião, em histórias que expunham o vazio espiritual inerente à sociedade americana”, afirma o biógrafo. Como reação ao seu desenvolvimento espiritual, Salinger acreditou ser necessário se afastar da badalação natural do estrelato, o que ele acreditava ser nocivo à sua meditação e trabalho como escritor.
Assim, quanto mais crescia a fama de Salinger, mais retirado ele ficava. Para Slawenski, “Salinger não escolheu deliberadamente se afastar do mundo. Seu isolamento foi uma progressão insidiosa que o envolveu aos poucos. Ele identificou as sombras descendo sobre ele, mas infelizmente se sentiu impotente para mudar o curso. Seu trabalho se tornara uma obrigação sagrada, e ele aceitou que aquela solidão e reclusão fossem o preço que ela exigia para ser cumprida”.
Desde quando deixou de publicar em 1965, sempre se especulou se, ao menos, ele continuou escrevendo, o que é praticamente certo. Quando da morte de Salinger, houve um frisson sobre onde estariam estes prováveis textos inéditos. Até hoje, ninguém os encontrou. Sobre isso, conforme relatado na biografia, existem as teorias mais diversas. Uma delas é que Salinger tenha enterrado seus textos em diversos pontos de sua propriedade em Cornish. Isso só reforça o sentimento de que dificilmente textos inéditos do escritor algum dia se tornem conhecidos. Salinger poderia ter publicado um novo livro quando quisesse. Ofertas não faltaram. Ele recusou todas. Junto a isso, pediu aos seus amigos que destruíssem todas as cartas por ele enviadas ao longo dos anos, em nome de sua privacidade, apagando material riquíssimo para biógrafos do autor, como Slawenski.
Mesmo diante de todos os esforços do escritor para tornar sua vida privada a mais desconhecida possível, em “Salinger: uma biografia” Slawenski produziu uma biografia de fôlego, intensa e contagiante. Certamente o biografado desaprovaria a publicação, desgostoso em ter sua vida tão exposta. Ciente disso, o biógrafo justifica humildemente a obra dizendo que ela é honesta e de coração: “Não é um pranto pelo morto. É um convite para uma saudação. Uma saudação não à memória, mas a essência de J. D. Salinger, e eu a ofereço aqui de novo a qualquer um que deseje honrar o escritor agora ou a qualquer momento nos anos que estão por vir”.
Se esta foi a proposta do livro, o biógrafo cumpriu o objetivo e, certamente, os leitores órfãos das famílias Caulfield e Glass aceitam de bom grado essa oferenda respeitosa e sem sentimentalismo de Slawenski a Salinger.
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Site do autor Kenneth Slawenski, dedicado a J. D. Salinger:
www.deadcaulfields.com
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