segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Art Chantry e o dom de convencer os outros a comprar um disco pela capa

Art Chantry

***
Há algum tempo tenho seguido pelo Facebook o artista gráfico norte-americano Art Chantry, que há três décadas é responsável por milhares de capas e cartazes de shows de bandas que vão de Mudhoney a Pussy Galore passando por Monomen e algumas centenas de outras, principalmente aquelas que lançavam suas músicas pelos selos Estrus e Sub Pop.

Art Chantry está imediatamente identificado com a cena da região noroeste dos Estados Unidos, lá para os lados de Seattle. E de fato ele teve uma influência gigantesca no apelo visual do grunge. Afinal, desde os anos 80 ele era o artista responsável também pela diagramação de muitas páginas da revista The Rocket, que cobria a movimentação musical daquela região dos States.
 

Na sua página no Facebook Art Chantry posta quase que diariamente várias imagens de seus trabalhos, acompanhados de muitos comentários sobre a produção de cada material. Melhor ainda, ele conta muitas histórias de bastidores sobre a cena grunge. Um material que definitivamente merece um livro.

Quem acompanha essas postagen acaba lendo sobre um montão de bandas que quase ninguém nem se quer ouviu falar. Aí você escolhe um disco com uma capa legal e vai no Google atrás de um link pra baixar para ver qualé a da banda, busca vídeo no YouTube, etc...

A "descoberta" de hoje é esse grupo chamado The Fumes (tão underground que nem no site All Music existe qualquer menção a ele), que em 1996 lançou um disco chamado "Self-Appointed Guardian of The Machine" (baixar). Uma punkadaria dos infernos traduzida muito bem pela capa. 
 

Art Chantry contou que o conceito era dar um pé na bunda na imagem idealizada da família feliz onipresente nas propagandas da fabricante de veículos Chevrolet na década de 50. Para tanto, nada melhor do que uma foto de um Chevy em 1957 totalmente destruído após bater contra um caminhão. O resto do trabalho de arte criado a partir da foto é pura inspiração de Art Chantry.

"Chantry é de outro planeta", definiu a revista Punk Planet, que em 1998 entrevistou o artista e o bate-papo pode ser lido na coletânea de textos da publicação, lançada no Brasil pela Editora Ideal com o título "Não devemos nada a você". Para a Punk Planet, o trabalho de Chantry é reconhecido a quilômetros de distância: avesso ao computador, ele faz manualmente o design de seus discos, pôsteres e revistas, preferindo estiletes, copiadoras e fotocomposição.
 

"Nunca trabalhei para uma grande corporação sem tomar no cu. (...) Um grande volume de coisas passa por aqui e são todos pequenos projetos e bandas que provavelmente vão acabar antes que o disco seja lançado, mas é disso que vivo", considerou na ocasião o designer, que hoje já beira os 60 anos, mas ainda está antenado e trabalhando em sintonia com o underground.
 

 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

RAHMA PROJEKT: música para encher os olhos




 O trabalho nasceu por acaso, mas tem merecido elogios de quem põe os olhos. Trata-se do “Rahma Projekt”, que como define o criador, “nasceu pelo desejo de criar simplesmente pelo prazer de criar. Uma válvula de escape que junta duas das minhas paixões: design e rock'n'roll.”

Com mais de 140 ilustrações produzidas ao longo dos últimos dois anos, o professor de design gráfico Rafael Hoffmann, de Criciúma (SC), traduz em imagens canções de artistas nacionais e internacionais. Em alguns dos trabalhos basta bater o olho na arte e sacar de qual música trata. Em outros é preciso pensar um pouco mais.

A coisa fica mais fácil se quem aprecia o Rahma Projekt possui uma boa bagagem de conhecimento musical. Mas se a bagagem não for muito grande, também vale apreciar as canções ilustradas que, obviamente, já estão sendo vendidas. Afinal, são ótimas peças de decoração – também em formato de almofadas, canecas e camisetas, além dos pôsteres.

Batemos um papo internético rápido com Rafael Hoffmann sobre o Projekt. Leia abaixo:

Rolling Stones - "It's only rock and roll"

Há quanto tempo existe e como foi que nasceu o projeto Rahma Projekt?
As primeiras ilustrações são de 08 de junho de 2011. O projeto não foi uma coisa pensada, planejada. Foi muito espontânea. Naquele dia, em um momento em que estava passando um período meio conturbado, com dúvidas profissionais e com sobrecarga de trabalho, eu estava ouvindo em loop de música “Fox on the Run”, do Manfred Mann, que tinha uma relação com o que eu estava sentindo. Ao ver uma imagem qualquer na internet, deu um "estalo" e simplesmente abri um programa e tentei expressar graficamente o refrão. Gostei do resultado, me senti melhor e entrei no piloto automático. No dia seguinte já tinha mais umas seis ou sete ilustrações e aí a coisa deslanchou. Não conseguia pensar em outra coisa.

Você logo mostrou esse trabalho para outras pessoas ou era algo mais pessoal mesmo?
De início não. Mas passado algum tempo eu comecei a publicar de forma anônima na internet através do Flickr para ter um retorno, ver o que outras pessoas achavam.

Deve ter ficado satisfeito com o feedback...
Bastante, foi bem acima das expectativas. Como era uma coisa bem pessoal, não achei que outras pessoas iam curtir tanto.

Esse seu trabalho remete a uma "cultura" que não existe muito aqui no Brasil, mas que é forte nos EUA e na Europa, que são os cartazes de shows, com ilustrações belíssimas. Esse seu trabalho sofre algum tipo de influência nesse sentido?
Claro, como designer sou maluco por cartazes em geral, mais especificamente os de shows. Inclusive, eles são meu tema da dissertação de mestrado em que vou falar sobre os cartazes do movimento psicodélico em São Francisco.

Que artistas te inspiram nessa forma de trabalho?
Cara, é uma mistureba de inspiração... Mas sou muito fã do trabalho do Saul Bass, responsável por alguns dos pôsteres e aberturas de filmes mais clássicos do Hitchcock. Gosto muito também da simplicidade carregada de significado do trabalho do Alexandre Wollner. Lester Beall, Paul Rand e Lucian Bernhard também são referências constantes, além de nomes mais atuais como Olly Moss, Mico Toledo, Pedro Vidotto e Noma Bar.

Há interesse em comercializar esse trabalho?
Na verdade eles já são comercializados há algum tempo. Eu procuro terceirizar tudo para não me estressar com nada além da criação. Existem várias lojas/sites que fazem esse "meio de campo", como  Urbanarts, Uzinga e Vandal.

Legião Urbana - "Faroeste Caboclo"



Guns n' Roses - "I used to love her"

The Doors - "Light My Fire"

Creedence Clearwater Revival - "Bad Moon Rising"

Johnny Cash - "Ain't no Grave"

Engenheiros do Havaí - "O Papa é Pop"

Eagles - "Hotel California"

Ramones - "Merry Christmas"

Leopoldo & Valéria - "Expresso do Rock"

Pearl Jam - "Jeremy"
---
Para ver mais acesse:

 

sábado, 2 de novembro de 2013

Garagem 95: uma década de rock nas antenas

Em 2012, no estúdio com Rodolfo (Cachorro Grande) e Chapola e Nevilton (Nevilton)

O programa Garagem 95 acaba de completar dez anos no ar pela Rádio Difusora 95 FM. Uma década! Tempo muito maior do que eu imaginava que o programa ficaria no ar. Na minha ideia, o Garagem 95 já teria sido um sucesso se tivesse duas ou três edições. Afinal, qual seria a reação das pessoas a um programa com a proposta de tocar rock, numa cidade/região onde esse estilo musical é do agrado da minoria?

Foi pagando pra ver que em 1º de novembro de 2003 que os já radialistas Macarrão e Popi e um jornalista abestado (eu!) sem experiência nenhuma com essa mídia entraram no estúdio para apresentar o primeiro Garagem 95. Se para os outros dois tudo era normal, para eu falar pela primeira vez no microfone foi um cagaço enorme, mas sobrevivi...

As músicas apresentadas na edição de estreia foram:

White Stripes – Seven Nation Army
Los Hermanos – O Vencedor
Belle & Sebastian - Jonathan David
Red Hot Chili Peppers – Universally Speaking
Yeah Yeah Yeahs – Date With The Night
Tequila Baby – Menina Linda
Radiohead – Go to Sleep

Kings of Leon – Molly’s Chambers
Raimundos – Nêga Jurema
Ramones (ÓBVIO!!!) – Rockaway Beach
Joey Ramone (ÓBVIO!!!) – What a Wondeful World
Charlie Brown Jr. – Como Tudo Deve Ser
Eddie Vedder – You’ve Got To Hide Your Love Away
Pavement – Gold Soundz

Bem metido a besta, né... Mas, a lista ilustra perfeitamente qual a ideia quando pensamos o programa. Tocar bandas que considerávamos boas, porém que eram pouco conhecidas, dando uma colher de chá para uns e outros hits radiofônicos, como no caso aí de cima o Red Hot Chili Peppers e o Raimundos. Na época, White Stripes, Kings of Leon e Yeah Yeah Yeahs, por exemplo, eram carne fresca.

Ah, e o Ramones ainda não tinha virado marca de roupa...
 
Faichecleres no 2º aniversário do Garagem 95, em 2005

Com o tempo, o trio que iniciou o programa virou uma dupla com a saída do Popi e, mais adiante, outros locutores se revezaram comigo na apresentação do programa, até que há uns cinco anos passei a conduzir sozinho o Garagem 95.

Nessa uma década muita gente bacana também apareceu no estúdio ou aceitou conceder entrevistas para o programa. Puxando rapidamente pela memória me vêm à cabeça nomes como Engenheiros do Havai, Capital Inicial, Bidê ou Balde, Acústicos & Valvulados, Tianastácia, Giovaneides, Tequila Baby, Forgotten Boys, Cachorro Grande, Relespública, Identidade, Pelebrói Não Sei, Dissonantes, Marcelo Nova, Nevilton e TNT.

Aconteceu do Fresno também participar ao vivo do Garagem 95, a única vez que adolescentes histéricas choraram ao lado do estúdio enquanto eu apresentava o programa... 

Entrevista com Marky Ramone, 2006

E tivemos ainda a entrevista com o Marky Ramone, realizada em Curitiba quando o baterista estava em turnê com a Tequila Baby.

Dez anos depois e com 503 programas nas costas, o Garagem 95, para o bem ou para o mal, se estabeleceu como um marco dentro do rádio na região por ser, provavelmente, o programa de rock há mais tempo no ar pelas bandas do Velho Oeste paranaense.

Espero continuar fazendo amigos através do habitual contato com os ouvintes todos os sábados e, com sorte e paciência, quem sabe daqui a alguns anos estaremos todos comemorando mais uma década no ar, mandando sempre muito rock pra dentro das orelhas...

---
(*) O Garagem 95 vai ao ar sábado, sempre das 18h00 às 20h00, pela Rádio Difusora FM, de Marechal Cândido Rondon (PR) - www.radiodifusora.com.br/fm


Humberto Gessinger (Engenheiros do Havaí), 2005
Entrevista/cervejada com Oneide (Pelebrói Não Sei) e Duda (Tequila Baby), 2005
Forgotten Boys, 2008
Carlinhos Carneiro (Bidê ou Balde), 2006
Relespública, 2008
Dissonantes, 2009
Identidade, 2008
Marcelo Nova (Camisa de Vênus), 2005
Nevilton na festa do 9º aniversário, 2012
Cachorro Grande nas comemorações de 10 anos do Garagem 95, 2013

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

“O Som da Revolução”: uma conversa sobre contracultura com Rodrigo Merheb



Rodrigo Merheb: "a resistência continua sempre"

O jornalista Rodrigo Merheb foi um dos convidados a palestrar durante o 1º Congresso Internacional Sobre Estudos do Rock, realizado no final de setembro na Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Unioeste, campus de Cascavel. Na oportunidade ele participou do debate que teve como tema “O rock e o jornalismo literário”.

Merheb é o autor do livro “O Som da Revolução – uma história cultural do rock: 1965-1969”. Lançado pela editora Civilização Brasileira no ano passado, o livro disseca a contracultura da segunda metade da década de 1960 nos Estados Unidos, sem deixar de fora suas conexões com a revolução cultural e comportamental que ao mesmo tempo se desenvolvia com força na Inglaterra.

Resultado de um trabalho de mais de seis anos, “O Som da Revolução” foi escrito enquanto ele morou nos Estados Unidos, onde trabalhou como vice-cônsul em Chicago. Para quem não conhecia ou tampouco sabia do trabalho de Merheb como colunista de cultura do jornal mineiro O Tempo, o que era meu caso, é muito estranho imaginar o que alguém ligado ao trabalho em um Consulado teria a dizer sobre a contracultura. Mas, ao ler as cerca de 500 páginas do livro fica evidente que Merheb tem muito que falar a respeito.

Partindo do recorte temporal entre a histórica apresentação de um recém-eletrificado Bob Dylan no tradicional festival folk de Newport, em 1965, e o trágico festival de Altamont promovido quatro anos depois pelos Rolling Stones, o jornalista conta e analisa no livro a ascensão, apogeu e diluição da cultura hippie.

Ao recorrer a uma extensa bibliografia atual e da época e fazendo valer o seu profundo conhecimento musical, Merheb criou uma narrativa racional sobre um movimento  marcado por grandes contradições, bem longe da imagem idealizada e sentimentalóide de paz e amor com que a história se encarregou de tratar o tema e seus principais personagens. Inclusive, explica o autor na introdução do livro, “o fato de não sentir nenhum tipo de nostalgia dos anos 1960 foi fundamental para entender as engrenagens históricas e culturais que sedimentaram essas mitologias”.

Abaixo, segue o bate-papo entre Rodrigo Merheb e eu durante a passagem do escritor por Cascavel.

Capa do livro de Rodrigo Merheb

***

CRISTIANO VITECK: Quando vi seu livro e comecei a folhear, pensei o que um vice-cônsul do Brasil teria para escrever sobre contracultura. Parecem ser mundos tão distintos e você habita os dois. Como foi que surgiu a ideia de escrever o livro?
RODRIGO MERHEB: Rock é uma paixão de adolescência, que pré-data a minha carreira no Itamaraty. É uma música que foi fundamental na minha vida. Não apenas a música, mas tudo que a cerca. Aprendi muito e foi fundamental na minha formação e na maneira de ver o mundo. Evidentemente que em algum momento, se você não é músico, segue uma carreira. Eu sou jornalista formado e entrei no Itamaraty logo depois de me formar. Mas nunca deixei de lado a vontade de escrever. Continuava sendo colunista de jornal. Quando minha coluna no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, foi interrompida, eu achei que era o momento de fazer uma obra de mais fôlego. Eu tinha conceitualmente essa ideia de contar a história de um movimento que tinha um processo de ascensão e declínio. Apesar de ter enveredado por outro caminho, a paixão pela música nunca deixou de estar presente na minha vida.

Nessa coluna de jornal você escrevia sobre o que?
Era uma coluna de cultura. Tinha total liberdade de pauta para escrever sobre o que eu quisesse. Nunca fui pautado, censurado e fiquei sete anos fazendo, até que se esgota. Se você não quer ficar fazendo aquilo a vida inteira, chega um ponto que já falou tudo o que tinha que falar naquele formato. Com o livro eu não precisava ter limitação de tempo, não precisava ficar preocupado com deadline. Podia me dedicar a fazer pesquisa na hora que me fosse mais adequada, porque eu tinha uma vida muito ocupada. Trabalhava o dia inteiro em outro tipo de trabalho, então tinha que escrever em minhas horas de folga e nos fins de semana. Demorou muito, mas finalmente terminei.


Quanto tempo levou para escrever o livro?
Eu comecei em 2004 e não terminei até hoje... (risos). A cada vez que eu olho descubro alguma coisa que gostaria de mudar. Mas, no todo, contando com a pesquisa e o texto deu uns seis anos. Eu meio que elaborei  todo o formato do livro na minha cabeça e ia escrevendo na medida em que ia pesquisando. Aí voltava, acrescentava coisas, tirava, até chegar ao formato certo.  Mas eu tinha conceitualmente o que queria, pois já conhecia razoavelmente a história. Só tinha que colocá-la no papel e acrescentar outros detalhes, confrontar visões que eram divergentes. Tudo isso leva tempo.

Suas principais fontes, quais foram?
Muito material bibliográfico, livros e revistas da época e de hoje. O fato de eu estar nos Estados Unidos facilitou muito porque eu podia ir ao sebo e comprar 50 livros e gastar muito pouco. A internet só serviu para eu comprar livros pela Amazon, mas em termos de pesquisa, nada.


No Brasil temos uma imagem muito distante da geração de Woodstock, tanto no tempo como geograficamente. Como você morou nos Estados Unidos, gostaria de saber qual a visão dos norte-americanos sobre Woodstock hoje.
Depende muito com quem você vai buscar essa interlocução. Evidentemente, o segmento mais conservador nunca aceitou e não aceita. Até hoje acham que aquilo foi um desvio de rota na história, nos ideais americanos, daquela trindade máxima da família, religião e pátria. Mas, os segmentos mais progressistas veem Woodstock como uma etapa muito necessária para a maturação do americano como cidadão, para ele pensar por si próprio e coletivamente também, em termos de criar outro tipo de sociedade possível, de como deve se organizar uma coisa mais fundada na harmonia e menos no consumo... Apesar de que Woodstock não era um festival beneficente, foi montado para dar lucro. Mas o resultado de Woodstock faz parte desse processo, é fundamental na contracultura americana. Do mesmo jeito que os conservadores achavam que aquilo era um desvio de rota, o pessoal mais progressista achava que aquilo era a restituição dos verdadeiros ideais americanos de justiça, liberdade, que estavam sendo esquecidos pelas classes dominantes, pelos governos. Então, a relação do americano com Woodstock depende basicamente a quem você perguntar. Os Estados Unidos são um país partido, tanto que em termos eleitorais o país é dividido entre Estados azuis e vermelhos. Quer dizer, quem é azul nunca vota nos republicanos, e vermelho nunca vota nos democratas. E tem os Estados pêndulos, que são quem invariavelmente decidem as eleições. Então, é um país muito fragmentado. As duas costas, Lestes e Oeste, muito progressistas e o miolo extremamente conservador.

No livro você conseguiu falar de todas as cenas da contracultura norte-americana das costas Leste e Oeste e também passou pela cena de Detroit. Quando se aborda a contracultura dos anos 60 nos Estados Unidos, se aborda geralmente a Califórnia...
É porque a contracultura é basicamente um movimento migratório do centro cultural da costa Leste (Nova York) para a Califórnia. Os beats começaram a descer para São Francisco nos anos 50 e a indústria do disco teve também uma mudança súbita de Nova York para Los Angeles. Los Angeles não era nada e, de repente, o centro da indústria disco acabou sendo a Califórnia. São Francisco já tinha uma tradição libertária que ficou mais forte pelo fato dos beats mudarem pra lá. A contracultura nasceu ali para criar uma subcultura baseada nos signos visuais e musicais do psicodelismo. Lógico que tinha em Nova York o East Village, que era muito contestador, cena de vanguarda. Tinha o Meio-Oeste... Na verdade, a coisa começou a se pulverizar. Mas o que deu o petardo inicial veio naturalmente da Califórnia, da cena de São Francisco.

Acho interessante que no livro você pontua elementos dissonantes da contracultura hippie, como o Velvet Underground e o próprio MC5.
O Velvet Underground era mais ligado ao universo de vanguarda de Nova York, uma coisa muito niilista. Você pode estabelecer as diferenças até pelas drogas que eles consumiam. Na Califórnia eram drogas lisérgicas, alucinógenas, que deixavam a pessoa meio prostrada. E em Nova York aquele pique do speed, da anfetamina que deixavam a pessoa completamente ligada. É uma redução, uma simplificação, evidentemente, mas que traduz um pouco do universo cultural desses dois polos. E Detroit era uma cidade de tradição operária, centro da indústria automotiva. Detroit teve um fluxo migratório de negros também por causa dessas frentes de trabalho que se abriam. Então, o que floresceu em Detroit foi uma coisa completamente diferente das outras, que era um rock proletário. Os meninos do MC5 seriam trabalhadores de fábrica se não fossem músicos. E eles se associaram com John Sinclair, que era um pensador intelectual ligado aos beats, um cara de tradição maoista que tinha exatamente essa visão de arregimentação das massas através das artes, da filosofia, da literatura. Então foi um casamento de interesses. Hoje isso é mais difícil de fazer, mas é possível radiografar uma cena por esse status sociopolítico de cada lugar e como as bandas acabam refletindo o ambiente geral das cidades de onde elas saíram.

MC5: rock proletário

A contracultura dos anos 60 teve uma relação de dicotomia entre a rebeldia e o mercado. Na indústria cultural, sabe-se que a rebeldia vende bem. Dá pra falar que a contracultura falhou ao ser cooptada pelo mercado?
Acho que é meio inevitável. Se você considerar o que era antes a indústria de discos nos Estados Unidos, o que era o mercado popular de venda de discos... De repente você tem uma interferência nesse processo que é a chegada de uma geração nova, que estava alinhada a valores muito mais libertários. Era uma geração com um pensamento muito mais crítico, que havia frequentado a universidade, que teve acesso a filmes, livros e tal e de repente eles carregam essa mensagem libertária para dentro da indústria do disco. Para a indústria do disco foi ótimo o advento do rock, pois começou a vender como nunca vendeu. Então existe realmente essa contradição de um movimento que nasce no underground em São Francisco e de repente a indústria coopta naturalmente aquilo e cumpre-se a trajetória tradicional, que é do underground para o mainstream. Você pode qualificar isso como uma coisa positiva ou negativa? Eu não sei, porque a quantidade de vidas que foi afetada pelo fato de ter a indústria de discos impulsionando essa música, enquanto ela erguia essa montanha de dinheiro e consolidava corporações de discos e estrangulava a música por outro lado... É um negócio sem solução à vista. É um aspecto fascinante, que é muito peculiar ao rock porque este é um problema que não tem no cinema underground, não tem na literatura. Então passa muito por aí. Em algum momento, o ideal sucumbe à lógica corporativa. Isso fica muito claro nos anos 60. É inevitável. Aconteceu o mesmo com todos os movimentos depois e eles só tiveram o alcance que tiveram por causa disso, infelizmente ou felizmente.

É possível dissociar a contracultura dos anos 60 do rock?
Eu acho muito difícil, quase impossível, porque eles (os grupos de rock) foram responsáveis por propagar essa mensagem para fora do gueto. Ela talvez tivesse tido um alcance como teve nos anos 50 com os beats, por exemplo. Eles (os beats) tiveram uma aceitação mercadológica muito além do que a literatura seria capaz de proporcionar, mas nunca tiveram o efeito catalisador, por exemplo, de montar um festival com 500 mil pessoas. Isso só a música consegue por causa do mercado. Beatles, Bob Dylan conseguiram traficar para dentro do sistema as mensagens mais libertárias, um jeito diferente de você ver a Igreja, o Estado... As pessoas absorveram essa mensagem e isso de alguma maneira transformou. Para mim, não tem como dissociar a música da contracultura. É um componente fundamental e indissociável.

Em “O Som da Revolução”, ao contrário da visão idealizada predominante, você apresenta uma versão muito diferente do festival de Woodstock. Aquele que é fã de Woodstock dirá que você traz uma visão pessimista.
Eu tinha essa concepção anterior do festival. Mas quando você desce na realidade, percebe que a história não é tão edulcorada. Foi um festival que, ao mesmo tempo em que foi uma declaração da força de uma subcultura que ali conseguiu reunir 500 mil pessoas, também era uma demonstração de como o mercado ficou massificado. O festival não teve nenhum caráter beneficente, nem foi para protestar contra a Guerra do Vietnã, não foi nada disso. Pessoas que gostavam muito de música fizeram um festival independente para ganhar dinheiro. E as primeiras pessoas que ganharam dinheiro com Woodstock foram as corporações, a Time-Warner que comprou os direitos do filme. Quando os meninos que organizaram o festival ainda estavam respondendo pilhas de processos, o pessoal das grandes gravadoras já estava ganhando dinheiro, entendeu? Então, Woodstock não deixou de ser uma cooptação dos ideais sessentistas para transformar em um produto vendável, assimilável para um número grande de pessoas. Há os dois lados. Uma pessoa no interior da Bahia que foi ver o documentário de Woodstock falou “Porra! O que é isso?! Quer dizer que você pode levar uma vida assim, não preciso levar desse jeito que tô levando...”. Então são os dois lados. Eu procuro não idealizar. A minha tarefa ao construir essa história é principalmente não criar mitos. É tratar as pessoas como os personagens que elas são e não como mitos.

Hell's Angels espancam o público no Festival de Altamont, em 1969

Dentro da contracultura dos anos 60, as drogas tiveram um papel fundamental. O uso disseminado delas foi um fator importante para a decadência do movimento? Penso que Woodstock foi o fim do auge da bebedeira e que o que veio dali em diante foi a ressaca.
É verdade. Rock Scully, que foi roadie do Grateful Dead, falava que Woodstock e Altamont eram dois lados da mesma moeda, a massificação da boêmia. Não dá para negar o papel que a droga teve para o impulso criativo desses artistas. Toda a linguagem psicodélica deriva exatamente de tentar recriar musicalmente esses estados alterados de percepção. Mas é bom sempre frisar que os grandes artistas da época, todos sobreviveram à droga e a droga sozinha não fabricou nenhum grande artista. Eu acho que foi uma etapa criativa na trajetória dessas pessoas, é uma etapa que eles passaram e que rendeu frutos fantásticos. Mas a droga sozinha não fabricou artista nenhum.

A contracultura seguiu adiante depois da década de 60. Tivemos o punk, a disco music, o grunge. Hoje, onde é possível enxergar a contracultura?
Acho que ficou pulverizada. A gente tende a achar que não está acontecendo nada. Quando eu estava na faculdade nos anos 80 também achava que não estava acontecendo nada e hoje as pessoas tratam como se aquela fosse uma época de ouro. É difícil ter uma perspectiva enquanto você está vivendo. Acho que grande parte da rebeldia se pulverizou e migrou para outras fontes. O rock definitivamente deixou de ter o papel de interlocutor privilegiado desses movimentos que estão acontecendo. Mas a resistência à cultura principal, à cultura dominante, é uma coisa que vem desde a Grécia e não vai acabar agora. Vai ter gente no ciberespaço, nas redes sociais que vai montar algum tipo de resistência. Tenho certeza que daqui a 30 anos as pessoas vão lembrar das redes sociais, de como a gente conseguia mobilizar todo mundo, fazer as pessoas acreditarem e ir para rua. Definitivamente, as coisas estão muito mais pulverizadas. O mundo ficou um lugar muito menor com muitos atores no processo. Acho até que está mais fácil conjurar pensamentos semelhantes porque há uma rede interconectada com pessoas que conseguem se comunicar com muito mais facilidade. A resistência continua sempre.