quarta-feira, 16 de outubro de 2013

“O Som da Revolução”: uma conversa sobre contracultura com Rodrigo Merheb



Rodrigo Merheb: "a resistência continua sempre"

O jornalista Rodrigo Merheb foi um dos convidados a palestrar durante o 1º Congresso Internacional Sobre Estudos do Rock, realizado no final de setembro na Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Unioeste, campus de Cascavel. Na oportunidade ele participou do debate que teve como tema “O rock e o jornalismo literário”.

Merheb é o autor do livro “O Som da Revolução – uma história cultural do rock: 1965-1969”. Lançado pela editora Civilização Brasileira no ano passado, o livro disseca a contracultura da segunda metade da década de 1960 nos Estados Unidos, sem deixar de fora suas conexões com a revolução cultural e comportamental que ao mesmo tempo se desenvolvia com força na Inglaterra.

Resultado de um trabalho de mais de seis anos, “O Som da Revolução” foi escrito enquanto ele morou nos Estados Unidos, onde trabalhou como vice-cônsul em Chicago. Para quem não conhecia ou tampouco sabia do trabalho de Merheb como colunista de cultura do jornal mineiro O Tempo, o que era meu caso, é muito estranho imaginar o que alguém ligado ao trabalho em um Consulado teria a dizer sobre a contracultura. Mas, ao ler as cerca de 500 páginas do livro fica evidente que Merheb tem muito que falar a respeito.

Partindo do recorte temporal entre a histórica apresentação de um recém-eletrificado Bob Dylan no tradicional festival folk de Newport, em 1965, e o trágico festival de Altamont promovido quatro anos depois pelos Rolling Stones, o jornalista conta e analisa no livro a ascensão, apogeu e diluição da cultura hippie.

Ao recorrer a uma extensa bibliografia atual e da época e fazendo valer o seu profundo conhecimento musical, Merheb criou uma narrativa racional sobre um movimento  marcado por grandes contradições, bem longe da imagem idealizada e sentimentalóide de paz e amor com que a história se encarregou de tratar o tema e seus principais personagens. Inclusive, explica o autor na introdução do livro, “o fato de não sentir nenhum tipo de nostalgia dos anos 1960 foi fundamental para entender as engrenagens históricas e culturais que sedimentaram essas mitologias”.

Abaixo, segue o bate-papo entre Rodrigo Merheb e eu durante a passagem do escritor por Cascavel.

Capa do livro de Rodrigo Merheb

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CRISTIANO VITECK: Quando vi seu livro e comecei a folhear, pensei o que um vice-cônsul do Brasil teria para escrever sobre contracultura. Parecem ser mundos tão distintos e você habita os dois. Como foi que surgiu a ideia de escrever o livro?
RODRIGO MERHEB: Rock é uma paixão de adolescência, que pré-data a minha carreira no Itamaraty. É uma música que foi fundamental na minha vida. Não apenas a música, mas tudo que a cerca. Aprendi muito e foi fundamental na minha formação e na maneira de ver o mundo. Evidentemente que em algum momento, se você não é músico, segue uma carreira. Eu sou jornalista formado e entrei no Itamaraty logo depois de me formar. Mas nunca deixei de lado a vontade de escrever. Continuava sendo colunista de jornal. Quando minha coluna no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, foi interrompida, eu achei que era o momento de fazer uma obra de mais fôlego. Eu tinha conceitualmente essa ideia de contar a história de um movimento que tinha um processo de ascensão e declínio. Apesar de ter enveredado por outro caminho, a paixão pela música nunca deixou de estar presente na minha vida.

Nessa coluna de jornal você escrevia sobre o que?
Era uma coluna de cultura. Tinha total liberdade de pauta para escrever sobre o que eu quisesse. Nunca fui pautado, censurado e fiquei sete anos fazendo, até que se esgota. Se você não quer ficar fazendo aquilo a vida inteira, chega um ponto que já falou tudo o que tinha que falar naquele formato. Com o livro eu não precisava ter limitação de tempo, não precisava ficar preocupado com deadline. Podia me dedicar a fazer pesquisa na hora que me fosse mais adequada, porque eu tinha uma vida muito ocupada. Trabalhava o dia inteiro em outro tipo de trabalho, então tinha que escrever em minhas horas de folga e nos fins de semana. Demorou muito, mas finalmente terminei.


Quanto tempo levou para escrever o livro?
Eu comecei em 2004 e não terminei até hoje... (risos). A cada vez que eu olho descubro alguma coisa que gostaria de mudar. Mas, no todo, contando com a pesquisa e o texto deu uns seis anos. Eu meio que elaborei  todo o formato do livro na minha cabeça e ia escrevendo na medida em que ia pesquisando. Aí voltava, acrescentava coisas, tirava, até chegar ao formato certo.  Mas eu tinha conceitualmente o que queria, pois já conhecia razoavelmente a história. Só tinha que colocá-la no papel e acrescentar outros detalhes, confrontar visões que eram divergentes. Tudo isso leva tempo.

Suas principais fontes, quais foram?
Muito material bibliográfico, livros e revistas da época e de hoje. O fato de eu estar nos Estados Unidos facilitou muito porque eu podia ir ao sebo e comprar 50 livros e gastar muito pouco. A internet só serviu para eu comprar livros pela Amazon, mas em termos de pesquisa, nada.


No Brasil temos uma imagem muito distante da geração de Woodstock, tanto no tempo como geograficamente. Como você morou nos Estados Unidos, gostaria de saber qual a visão dos norte-americanos sobre Woodstock hoje.
Depende muito com quem você vai buscar essa interlocução. Evidentemente, o segmento mais conservador nunca aceitou e não aceita. Até hoje acham que aquilo foi um desvio de rota na história, nos ideais americanos, daquela trindade máxima da família, religião e pátria. Mas, os segmentos mais progressistas veem Woodstock como uma etapa muito necessária para a maturação do americano como cidadão, para ele pensar por si próprio e coletivamente também, em termos de criar outro tipo de sociedade possível, de como deve se organizar uma coisa mais fundada na harmonia e menos no consumo... Apesar de que Woodstock não era um festival beneficente, foi montado para dar lucro. Mas o resultado de Woodstock faz parte desse processo, é fundamental na contracultura americana. Do mesmo jeito que os conservadores achavam que aquilo era um desvio de rota, o pessoal mais progressista achava que aquilo era a restituição dos verdadeiros ideais americanos de justiça, liberdade, que estavam sendo esquecidos pelas classes dominantes, pelos governos. Então, a relação do americano com Woodstock depende basicamente a quem você perguntar. Os Estados Unidos são um país partido, tanto que em termos eleitorais o país é dividido entre Estados azuis e vermelhos. Quer dizer, quem é azul nunca vota nos republicanos, e vermelho nunca vota nos democratas. E tem os Estados pêndulos, que são quem invariavelmente decidem as eleições. Então, é um país muito fragmentado. As duas costas, Lestes e Oeste, muito progressistas e o miolo extremamente conservador.

No livro você conseguiu falar de todas as cenas da contracultura norte-americana das costas Leste e Oeste e também passou pela cena de Detroit. Quando se aborda a contracultura dos anos 60 nos Estados Unidos, se aborda geralmente a Califórnia...
É porque a contracultura é basicamente um movimento migratório do centro cultural da costa Leste (Nova York) para a Califórnia. Os beats começaram a descer para São Francisco nos anos 50 e a indústria do disco teve também uma mudança súbita de Nova York para Los Angeles. Los Angeles não era nada e, de repente, o centro da indústria disco acabou sendo a Califórnia. São Francisco já tinha uma tradição libertária que ficou mais forte pelo fato dos beats mudarem pra lá. A contracultura nasceu ali para criar uma subcultura baseada nos signos visuais e musicais do psicodelismo. Lógico que tinha em Nova York o East Village, que era muito contestador, cena de vanguarda. Tinha o Meio-Oeste... Na verdade, a coisa começou a se pulverizar. Mas o que deu o petardo inicial veio naturalmente da Califórnia, da cena de São Francisco.

Acho interessante que no livro você pontua elementos dissonantes da contracultura hippie, como o Velvet Underground e o próprio MC5.
O Velvet Underground era mais ligado ao universo de vanguarda de Nova York, uma coisa muito niilista. Você pode estabelecer as diferenças até pelas drogas que eles consumiam. Na Califórnia eram drogas lisérgicas, alucinógenas, que deixavam a pessoa meio prostrada. E em Nova York aquele pique do speed, da anfetamina que deixavam a pessoa completamente ligada. É uma redução, uma simplificação, evidentemente, mas que traduz um pouco do universo cultural desses dois polos. E Detroit era uma cidade de tradição operária, centro da indústria automotiva. Detroit teve um fluxo migratório de negros também por causa dessas frentes de trabalho que se abriam. Então, o que floresceu em Detroit foi uma coisa completamente diferente das outras, que era um rock proletário. Os meninos do MC5 seriam trabalhadores de fábrica se não fossem músicos. E eles se associaram com John Sinclair, que era um pensador intelectual ligado aos beats, um cara de tradição maoista que tinha exatamente essa visão de arregimentação das massas através das artes, da filosofia, da literatura. Então foi um casamento de interesses. Hoje isso é mais difícil de fazer, mas é possível radiografar uma cena por esse status sociopolítico de cada lugar e como as bandas acabam refletindo o ambiente geral das cidades de onde elas saíram.

MC5: rock proletário

A contracultura dos anos 60 teve uma relação de dicotomia entre a rebeldia e o mercado. Na indústria cultural, sabe-se que a rebeldia vende bem. Dá pra falar que a contracultura falhou ao ser cooptada pelo mercado?
Acho que é meio inevitável. Se você considerar o que era antes a indústria de discos nos Estados Unidos, o que era o mercado popular de venda de discos... De repente você tem uma interferência nesse processo que é a chegada de uma geração nova, que estava alinhada a valores muito mais libertários. Era uma geração com um pensamento muito mais crítico, que havia frequentado a universidade, que teve acesso a filmes, livros e tal e de repente eles carregam essa mensagem libertária para dentro da indústria do disco. Para a indústria do disco foi ótimo o advento do rock, pois começou a vender como nunca vendeu. Então existe realmente essa contradição de um movimento que nasce no underground em São Francisco e de repente a indústria coopta naturalmente aquilo e cumpre-se a trajetória tradicional, que é do underground para o mainstream. Você pode qualificar isso como uma coisa positiva ou negativa? Eu não sei, porque a quantidade de vidas que foi afetada pelo fato de ter a indústria de discos impulsionando essa música, enquanto ela erguia essa montanha de dinheiro e consolidava corporações de discos e estrangulava a música por outro lado... É um negócio sem solução à vista. É um aspecto fascinante, que é muito peculiar ao rock porque este é um problema que não tem no cinema underground, não tem na literatura. Então passa muito por aí. Em algum momento, o ideal sucumbe à lógica corporativa. Isso fica muito claro nos anos 60. É inevitável. Aconteceu o mesmo com todos os movimentos depois e eles só tiveram o alcance que tiveram por causa disso, infelizmente ou felizmente.

É possível dissociar a contracultura dos anos 60 do rock?
Eu acho muito difícil, quase impossível, porque eles (os grupos de rock) foram responsáveis por propagar essa mensagem para fora do gueto. Ela talvez tivesse tido um alcance como teve nos anos 50 com os beats, por exemplo. Eles (os beats) tiveram uma aceitação mercadológica muito além do que a literatura seria capaz de proporcionar, mas nunca tiveram o efeito catalisador, por exemplo, de montar um festival com 500 mil pessoas. Isso só a música consegue por causa do mercado. Beatles, Bob Dylan conseguiram traficar para dentro do sistema as mensagens mais libertárias, um jeito diferente de você ver a Igreja, o Estado... As pessoas absorveram essa mensagem e isso de alguma maneira transformou. Para mim, não tem como dissociar a música da contracultura. É um componente fundamental e indissociável.

Em “O Som da Revolução”, ao contrário da visão idealizada predominante, você apresenta uma versão muito diferente do festival de Woodstock. Aquele que é fã de Woodstock dirá que você traz uma visão pessimista.
Eu tinha essa concepção anterior do festival. Mas quando você desce na realidade, percebe que a história não é tão edulcorada. Foi um festival que, ao mesmo tempo em que foi uma declaração da força de uma subcultura que ali conseguiu reunir 500 mil pessoas, também era uma demonstração de como o mercado ficou massificado. O festival não teve nenhum caráter beneficente, nem foi para protestar contra a Guerra do Vietnã, não foi nada disso. Pessoas que gostavam muito de música fizeram um festival independente para ganhar dinheiro. E as primeiras pessoas que ganharam dinheiro com Woodstock foram as corporações, a Time-Warner que comprou os direitos do filme. Quando os meninos que organizaram o festival ainda estavam respondendo pilhas de processos, o pessoal das grandes gravadoras já estava ganhando dinheiro, entendeu? Então, Woodstock não deixou de ser uma cooptação dos ideais sessentistas para transformar em um produto vendável, assimilável para um número grande de pessoas. Há os dois lados. Uma pessoa no interior da Bahia que foi ver o documentário de Woodstock falou “Porra! O que é isso?! Quer dizer que você pode levar uma vida assim, não preciso levar desse jeito que tô levando...”. Então são os dois lados. Eu procuro não idealizar. A minha tarefa ao construir essa história é principalmente não criar mitos. É tratar as pessoas como os personagens que elas são e não como mitos.

Hell's Angels espancam o público no Festival de Altamont, em 1969

Dentro da contracultura dos anos 60, as drogas tiveram um papel fundamental. O uso disseminado delas foi um fator importante para a decadência do movimento? Penso que Woodstock foi o fim do auge da bebedeira e que o que veio dali em diante foi a ressaca.
É verdade. Rock Scully, que foi roadie do Grateful Dead, falava que Woodstock e Altamont eram dois lados da mesma moeda, a massificação da boêmia. Não dá para negar o papel que a droga teve para o impulso criativo desses artistas. Toda a linguagem psicodélica deriva exatamente de tentar recriar musicalmente esses estados alterados de percepção. Mas é bom sempre frisar que os grandes artistas da época, todos sobreviveram à droga e a droga sozinha não fabricou nenhum grande artista. Eu acho que foi uma etapa criativa na trajetória dessas pessoas, é uma etapa que eles passaram e que rendeu frutos fantásticos. Mas a droga sozinha não fabricou artista nenhum.

A contracultura seguiu adiante depois da década de 60. Tivemos o punk, a disco music, o grunge. Hoje, onde é possível enxergar a contracultura?
Acho que ficou pulverizada. A gente tende a achar que não está acontecendo nada. Quando eu estava na faculdade nos anos 80 também achava que não estava acontecendo nada e hoje as pessoas tratam como se aquela fosse uma época de ouro. É difícil ter uma perspectiva enquanto você está vivendo. Acho que grande parte da rebeldia se pulverizou e migrou para outras fontes. O rock definitivamente deixou de ter o papel de interlocutor privilegiado desses movimentos que estão acontecendo. Mas a resistência à cultura principal, à cultura dominante, é uma coisa que vem desde a Grécia e não vai acabar agora. Vai ter gente no ciberespaço, nas redes sociais que vai montar algum tipo de resistência. Tenho certeza que daqui a 30 anos as pessoas vão lembrar das redes sociais, de como a gente conseguia mobilizar todo mundo, fazer as pessoas acreditarem e ir para rua. Definitivamente, as coisas estão muito mais pulverizadas. O mundo ficou um lugar muito menor com muitos atores no processo. Acho até que está mais fácil conjurar pensamentos semelhantes porque há uma rede interconectada com pessoas que conseguem se comunicar com muito mais facilidade. A resistência continua sempre.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Black Sabbath enfeitiça 30 mil camisetas pretas em Porto Alegre

Black Sabbath em Porto Alegre

Meninos eu vi e vim lhes contar. Na quarta-feira (09) Porto Alegre (RS) recebeu o primeiro dos quatro shows da “Reunion Tour” que a banda inglesa Black Sabbath fará no país. Cerca de 30 mil pessoas lotaram o estacionamento da Fiergs onde puderam comprovar o porquê do grupo ser um dos maiores nomes do rock em todos os tempos. Em uma apresentação com 16 canções, o público foi possuído por uma lista de clássicos que iniciou com “War Pigs” e terminou duas horas depois com “Paranoid”.

A turnê, que no Brasil passa hoje (11) por São Paulo e nos dias 13 e 15 pelo Rio de Janeiro e Belo Horizonte, é histórica por vários motivos. O principal é porque esta é a primeira vez que a banda se apresenta no Brasil com Ozzy Osbourne nos vocais. Membro da formação original do grupo, surgido na cidade inglesa de Birmingham em 1969, o cantor foi expulso em 1978 por abusar das drogas e álcool – isso em uma banda onde ninguém era santo... 

Ozzy: "Eu sou muito louco!" (Foto: Bruno Alencastro/Agência RBS)

Outro motivo que torna esses shows tão especiais é que a “Reunion Tour” divulga o primeiro álbum de estúdio do Black Sabbath com Ozzy, o guitarrista Tony Iommi e o baixista Terry Geezer Butler desde “Never Say Die!”, de 1978. A ideia inicial era reunir toda a formação original do Black Sabbath para a gravação do disco “13”. Porém, por problemas contratuais e de saúde o baterista Bill Ward ficou de fora. Lançado no primeiro semestre deste ano, “13” foi gravado com Brad Wilk, baterista do Rage Against The Machine.

O mais recente disco do Black Sabbath se encaixou tão bem na discografia da primeira era do grupo que na atual turnê ao menos três faixas (“The End of the Beginning”, “God is Dead?” e “Age of Reason”) se firmaram no set list, misturadas em meio às melhores músicas pinçadas dos quatro primeiros discos do grupo: Black Sabbath (1970), Paranoid (1970), Master of Reality (1971) e Volume 4 (1972).

Quem apostava em um show meio devagar com três velhinhos na casa dos 60 anos mal conseguindo ficar de pé caiu do cavalo. Apesar de pouco se moverem no palco, Ozzy, Iommi e Butler demonstraram que, se esta é de fato a última turnê da banda, pretendem deixar os palcos e iniciar a aposentadoria em grande estilo. Com um som impecável (o que nem sempre acontece em grandes shows) o Black Sabbath executou com perfeição seus clássicos.

Brincando de ser mau!

Tá certo que às vezes a voz de Ozzy dava umas derrapadas e o telão entregou que, principalmente nas longas músicas de “13”, o cantor recorreu ao pequeno monitor que exibia as letras para ele poder cantar. Fora isso, duvido que não teve muito marmanjo que sentiu um frio na espinha quando Ozzy começou a cantar os versos diabólicos da música “Black Sabbath”. Já Tony Iommi, que vem se recuperando muito bem de um câncer, e Geezer Butler tocaram seus instrumentos com a habilidade garantida nos 44 anos de carreira.

Show à parte deu o baterista Tommy Clufetos, que apesar de tocar com a banda da carreira-solo de Ozzy Ousborne, é praticamente desconhecido. Espancando os tambores sem dó e já chamando a atenção nos primeiros minutos do show, Clufetos passou de figurante a protagonista quando, possuído, por mais de cinco minutos ficou sozinho no palco executando um solo de bateria que justificou o porquê de Bill Ward ter sido limado da turnê...

Trinta mil camisetas pretas decoraram o lugar (Foto: O Globo/G1)

O público também merece nota. Obviamente era possível contar nos dedos aqueles que não estavam vestindo camiseta preta. Moleques mal saído das fraldas se misturavam a tiozões barrigudos e tatuados que devem curtir Black Sabbath desde o início da banda. Pais e mães também acompanhados de filhos pequenos provaram ainda que a fama do grupo está assegurada pelas próximas gerações.

Porto Alegre teve a satisfação de ver e ouvir em alto e bom som uma das últimas lendas da música. Por muitas décadas acusados de satanistas, Ozzy, Tommy e Butler estão mostrando para os brasileiros que se um dia venderam suas almas, elas foram vendidas mesmo é para o rock and roll... Graças a Deus!

Imprensa gaúcha deu ampla divulgação ao show histórico
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Músicas apresentadas em Porto Alegre:

“War Pigs”
“Into the Void”
“Under the Sun”
“Snowblind”
“Age of Reason”
“Black Sabbath”
“Behind the Wall of Sleep”
“N.I.B.”
“End of the Beginning”
“Fairies Wear Boots”
“Rat Salad”
“Iron Man”
“God is Dead?”
“Dirty Women”
“Children of the Grave”
“Paranoid”


quarta-feira, 2 de outubro de 2013

DOFA, DERMA, JIMO: o grunge e o rock underground às avessas


Público grunge (Foto: Charles Petterson)
Entre os dias 25 e 27 de setembro, aconteceu na Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Unioeste, em Cascavel, o 1º Congresso Internacional de Estudos do Rock. Com cerca de 800 inscritos e aproximadamente 200 artigos apresentados, o evento foi o maior já realizado no país até agora no que se refere à apresentação de artigos científicos sobre o rock.

Apresentei o artigo "DOFA, DERMA, JIMO: o grunge e o rock underground às avessas", um dos poucos, senão o único, a abordar a cena musical de Seattle que ficou famosa  o início dos anos 90. Além de abordar historicamente a cena, também faço discussões sobre a apropriação dela pela indústria cultural e sua exploração como mercadoria.

(*) DOFA, DERMA e JIMO: anagramas das palavras “foda”, “merda” e “mijo”. Título do artigo inspirado pelo disco “In Utero” do Nirvana, que traz no encarte como sendo a letra da música “Tourett’s” os anagramas “Cufk”, “Tish” e “Sips”, que significam “fuck”, “shit” e “piss”.


Capa do disco "Nevermind"
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DOFA, DERMA, JIMO: o grunge e o rock underground às avessas

Grunge: 1 sujo; encardido. 2 pessoa chata, nojenta”
- Minidicionário Silveira Bueno: inglês-português/português-inglês

Era para ser apenas mais um disco de rock de uma banda qualquer nos Estados Unidos. Com um esforço extra de divulgação e um pouco de sorte, talvez o álbum vendesse algumas dezenas de milhares de cópias e colocasse o grupo como um dos destaques do rock underground. Sendo extremamente otimista, talvez uma ou outra canção agradasse os programadores e eles a executassem por um pequeno período nas emissoras de rádio para depois ser esquecida, como acontece com a maioria das músicas. Dizer que ele se tornaria um clássico? Só se fosse para fazer piada!

A verdade é que antes de 24 de setembro de 1991, nenhuma pessoa que soubesse do lançamento do disco e estivesse em completo estado de lucidez diria que o álbum “Nevermind”, o segundo da carreira do Nirvana, se tornaria um dos maiores clássicos do rock mundial. Duas décadas depois de lançado, “Nevermind” já ultrapassou a marca dos 30 milhões de cópias vendidas. Um número bem acima das apostas da DGC (um selo pertencente à gigantesca gravadora David Geffen Company), cuja expectativa mais otimista era de que o álbum atingisse 500 mil unidades comercializadas.

Mas como foi possível um disco de uma banda desconhecida, sem nenhuma grande estratégia promocional, se transformar em poucos dias em um fenômeno gigantesco da cultura pop? Como o Nirvana, de patinho feio dentro do próprio cenário underground, se tornou o cisme branco do rock, “atropelando” em popularidade os mega-astros do Guns n’ Roses? Como “Nevermind” derrubou o álbum “Dangerous” de Michael Jackson do primeiro lugar da parada da Billboard em 12 de janeiro de 1992? E, finalmente, como foi que o Nirvana conseguiu acender o estopim que fez explodir a cena que ficou conhecida como grunge, da qual pipocaram tantos outros grupos que conquistaram a fama como Pearl Jam, Soundgarden e Alice in Chains?

A resposta mais óbvia é que “Nevermind” foi um sucesso porque é um excelente disco, que soube equilibrar riffs de punk rock com melodias assobiáveis. Também tem uma capa legal: um bebê sem roupa mergulhado em uma piscina e sendo fisgado por uma nota de um dólar!  Há que se considerar a força vocal e lírica de Kurt Cobain: dono de uma voz marcante, especialmente quando gritava os versos dos refrões barulhentos do Nirvana. Por fim, deve ser lembrado que qualquer disco que tivesse como faixa de abertura a canção “Smells Like Teen Spirit” (que a banda apelidou de “The Hit”, debochando do próprio sucesso) seria um forte candidato a alcançar o topo das paradas.

O fenômeno Nirvana/”Nevermind” deu início a um novo capítulo da história do rock underground dos Estados Unidos. Inspirado no “faça você mesmo”, lema punk do final dos anos 1970, durante toda a década de 1980 o rock alternativo estadunidense criou uma ampla teia sustentada por um público que frequentava um circuito de pequenas casas de shows espalhadas pelas maiores cidades do país. Esse mesmo público lia fanzines xerocados com entrevistas e reportagens sobre artistas que as grandes mídias não estavam interessadas em cobrir e comprava discos lançados por selos independentes de bandas que quase ninguém tinha ouvido falar.

Tudo muito diferente do rock comercial que tanto fazia sucesso naquela década, especialmente em se tratando de bandas de hard rock ou heavy metal como Bon Jovi, Poison, Van Halen, Mötley Crue e, mais para o fim dos anos 1980, o Guns n’ Roses. Para estas e tantas outras bandas de destaque neste gênero, contratos milionários, namoros com modelos famosas, mansões, carrões e viagens em luxuosos ônibus ou aviões para chegar aos locais onde se apresentavam para plateias enormes eram rotina. Obviamente, o interesse da mídia por esse estilo de rock era imenso.

“Nevermind” mudou tudo isso. O rock underground repentinamente virou mainstream e passou a ocupar grande parte da programação das rádios e dos canais de televisão especializados em música, como a MTV. Revistas, não só de músicas, mas também de moda e variedades recheavam suas páginas com qualquer coisa que pudesse ser relacionada com as palavras Nirvana, grunge e Seattle, cidade onde nasceu esta cena musical.

Dave Lee Roth, vocalista do Van Halen

Dave Lee Roth, vocalista do Van Halen – um dos maiores grupos de rock comercial da década de 1980 –, não deixa dúvidas sobre o impacto representado pelo Nirvana. Em entrevista recente ao site Buzzfeed, quando questionado sobre qual teria sido o motivo da decadência do grupo dele no início dos anos 1990, ele respondeu:

Duas palavras: Kurt Cobain. Eu fui de tocar para 12 mil pessoas para 1.200. De arenas para cassinos e exposições agropecuárias e na House of Blues. Isso faz com que você reflita muito mais claramente em seus valores. A diversão não era mais vista como diversão. (apud BELGRANDE, 2013)

Já o jornalista André Barcinski, quando o fenômeno grunge estava iniciando, definiu: “o Nirvana é carne fresca, e Seattle é um grande açougue” (1992, p. 111).

Terra da garoa e dos assassinos em série

Seattle está localizada no Estado de Washington, na região Noroeste dos Estados Unidos, e tem hoje população estimada em pouco mais de 616 mil habitantes (CITY OF SEATTLE, 2012). A cidade começou a ser colonizada na metade do século XIX e teve forte crescimento, principalmente por ser rota de passagem daqueles que se arriscavam na corrida do ouro no Alaska. Situada na Baía de Elliot, na costa do Oceano Pacífico, Seattle rapidamente se tornou uma importante cidade portuária.

Em 1916 surgiu lá a Boing, maior fabricante de aviões que, embora tenha mudado sua sede para Chicago, mantém na cidade de Everett, a cerca de 40 quilômetros de Seattle, a maior fábrica de aeronaves do mundo. Foi lá que também nasceu em 1971 a Starbucks, a maior cafeteria do planeta. E desde 1979, Seattle é a sede do Microsoft, fato que contribuiu muito para que, a partir dos anos 1980, a cidade se tornasse um dos principais polos tecnológicos do país. Já em 1994, foi fundada em Seattle a Amazon, hoje  maior empresa de comércio eletrônico do mundo.

Entre 1910 e 1950, Seattle também teve uma cena interessante de clubes de jazz. Porém, até o surgimento do grunge, na área musical a cidade era mais lembrada por ter sido a terra natal do guitarrista Jimi Hendrix (1942-1970).

A torre Space Needle é um dos símbolos de Seattle

Em 1962, a cidade sediou a Exposição Mundial. Para o evento foi construída a “Space Needle” (Agulha Espacial), uma torre com 184 metros que atualmente é o principal cartão-postal da cidade. Ironicamente, a “Agulha Espacial” também remete a outro aspecto famoso, só que bem mais sombrio de Seattle: o consumo de heroína – droga injetável que tem no porto de Seattle um importante local de entrada, sendo facilmente encontrada na cidade. Vários músicos da cena grunge foram usuários, sendo que alguns morreram em decorrência do vício em heroína. Os casos mais conhecidos são os do cantor Andrew Wood, da banda Mother Love Bone, morto em 1990; de Stefanie Sargent, guitarrista do grupo 7 Year Bitch, morta em 1992; e de Layne Stanley, vocalista do Alice in Chains, que morreu de overdose em 2002, enquanto que seu antigo companheiro de banda, o baixista Mike Starr, teve o mesmo fim em 2011.

Houve ainda grandes escândalos em torno da droga e o Nirvana. Em 1992, Courtney Love, líder da banda Hole e esposa de Kurt Cobain, teria dito à revista Vanity Fair que usou heroína no início da gravidez, quando não sabia que teria um bebê. O líder do Nirvana, por sua vez, teve seguidas overdoses e os legistas descobriram que ele havia injetado uma quantidade gigante da droga instantes antes de atirar contra a própria cabeça, em 05 de abril de 1994.

Reportagem do jornal Seattle Times publicada 15 dias após o suicídio do líder do Nirvana, sob o título “’Seattle Scene’ and heroin use: how bad is it”, afirma que a morte de Kurt Cobain atraiu a atenção de todos os Estados Unidos para Seattle, que de longa data era vista como um local onde o uso da droga estava disseminado. Conforme o jornal, as mortes por overdose de heroína na cidade havia saltado de 32 casos em 1986 para 59 em 1992. E somente nos primeiros seis meses de 1993, as estatísticas já revelavam que 410 casos de overdose ocorreram na cidade no período (SEATTLE TIMES STAFF, 1994).

As pessoas ouvidas pela reportagem do Seattle Times, muitas delas ligadas à cena musical da cidade, fizeram questão de negar que a heroína tivesse uso difundido entre as bandas. Daniel House, proprietário do selo C/Z Records, afirmou que em Seattle não havia mais heroína do que em outras cidades e que as drogas mais usadas pelos músicos eram álcool e maconha. Grande ou pequeno, o problema da heroína parece persistir na cidade. Outra matéria do Seattle Times, esta publicada em 12 de junho deste ano, alerta que o uso de heroína cresceu em todo o Estado de Washington na última década, principalmente, entre os jovens de 18 a 30 anos (BLANKINSHIP, 2013).

Além das drogas, o Noroeste dos Estados Unidos tem a fama de ser a região que concentra a maioria dos casos de assassinos em série do País. Artigo publicado no site da rádio KPLU, da cidade de Tacoma – próxima a Seattle – questiona por que isso acontece. O texto defende que Seattle e arredores passaram a ter essa reputação a partir da década de 1970, quando o assassino conhecido como “Ted Bundy” estuprou e matou 30 mulheres, sendo 11 delas no Estado de Washington (KENDRICK; GREIM, 20??).

Gary Ridgway, o assassino de Green River


Nos anos 1980, outro assassino em série chocou o País pelos crimes cometidos na região. Gary Ridgway, conhecido como o matador de Green River, confessou ter assassinado 49 mulheres. Outros assassinos em série notórios que agiram por lá foram Kenneth Bianchi, que cometeu a maioria de seus crimes em Los Angeles, mas realizou seus dois últimos assassinatos numa pequena cidade de Washington em 1979; Westley Allan Dodd, acusado de ter molestado mais de 50 crianças e ter matado dois garotos em 1989; e Robert Lee Yates, que entre 1996 e 1998 matou 13 mulheres.

Embora em números absolutos Estados como Texas, Califórnia e Nova York tenham mais assassinos em série, proporcionalmente ao total de habitantes a região Noroeste é onde esses tipos de crimes mais acontecem. Segundo o mesmo artigo da KPLU, para Steven Egger, professor de criminologia da Universidade de Houston-Clear Lake e autor do livro “The Killers Among Us”, isso talvez se deva à geografia da região, repleta de ravinas e florestas, locais onde corpos podem ser facilmente escondidos.

Se a realidade já é sinistra, o cinema e a televisão souberam e ainda sabem explorar muito bem essa fama perversa do local. Basta lembrar do seriado “Twin Peaks”, produzido por Mark Frost e David Lynch e exibido em duas temporadas em 1990 e 1991. A história se passa na fictícia cidade de “Twin Peaks”, no Estado de Washington, onde agentes do FBI investigam o assassinato de uma estudante chamada Laura Palmer. O seriado fez sucesso até no Brasil, exibido pela Rede Globo.

É bastante comum artistas, jornalistas ou qualquer pessoa envolvida com a cena musical de Seattle afirmar que o contraste entre o moderno e o sombrio da cidade teve influência forte no estilo musical conhecido como grunge. Embora se defina que o “som de Seattle” seja uma mistura do heavy metal do Black Sabbath com o punk rock dos Sex Pistols, na maioria das vezes é muito mais fácil encontrar diferenças do que semelhanças entre as bandas grunge. Basta ouvir Nirvana, Pearl Jam, Alice in Chains, Gits, Melvins, Sister Psychic, Fastbacks, Skin Yard, Green River, Mudhoney, TAD, Soundgarden, Love Battery, Gas Huffer, Candlebox, U-Men, Screaming Trees e tantas outras para perceber que as semelhanças maiores estão no fato das bandas terem surgido na mesma cidade ou arredores e vestirem-se de forma parecida.

Clima típico de Seattle, onde chove cerca de 150 dias por ano

Chama à atenção a quantidade de grupos que existiam em Seattle nas décadas de 1980 e 1990. A cidade é conhecida como um local onde chove muito. Lá, o Sol brilha cerca de 70 dias por ano. A média é de que ocorram precipitações pluviométricas em pelo menos 150 dias ao ano, especialmente no inverno e primavera. E, se não há chuva, é certo que em cerca de 290 dias o céu estará nublado em Seattle. Piada comum entre os músicos da cidade era contar que como chovia tanto na cidade e eles não podiam sair de casa, nada melhor que chamar os amigos para tocar algumas músicas em casa. Dessas “brincadeiras” teriam surgido algumas das bandas de rock mais famosas da história.

O início

U-Men foi uma das bandas de Seattle que começou a formatar o que ficaria conhecido como grunge. Formado em 1981, o grupo fez algumas turnês pelos Estados Unidos percorrendo o circuito underground, o que significa que na maioria das vezes tocou em espeluncas para poucas pessoas e que o cachê, quando havia, era mínimo.

Na primeira metade da década de 1980, Seattle estava definitivamente fora do mapa do rock. Poucas eram as bandas de renome que se apresentavam na cidade. Da mesma forma, poucas pessoas fora do Noroeste dos Estados Unidos estavam interessadas em conhecer o que era feito pelos grupos da região. Isso, à longo prazo, pode ter favorecido o surgimento da cena de Seattle, uma vez que esse “isolamento” forçou as pessoas a formarem pequenas casas de shows a abrirem suas portas para as bandas da cidade, caso quisessem ver um grupo de rock em ação.

U-Men tocando no Bat-Cave, em Seattle

Jack Endino, provavelmente o produtor que mais gravou as bandas de Seattle da geração grunge, não esconde sua surpresa pelo fato da cidade ter se tornado por um breve período a Meca da música:

Nobody thought there was any chance of having any success, so no decisions were made with that in mind. People made records entirely to please themselves because there was nobody else to please, there was no one paying attention to Seattle. It was like a little, isolated germ culture. (apud YARM, 2011, p. 14)

Desse modo, não é de se espantar que o lançamento do primeiro EP independente do U-Men, em 1984, tenha sido um acontecimento e tanto em Seattle. Para o jornalista Gillian G. Gaar, em certos aspectos é muito mais incrível que o U-Men tenha conseguido lançar um disco e sair em turnês do que o fato do Nirvana ter chegado ao primeiro lugar das paradas (apud Ibidem, p. 74).

Bruce Pavitt, cofundador da importante gravadora Sub Pop, conta que quando se mudou para Seattle foi trabalhar como lavador de pratos no restaurante Lake Union Café. No mesmo local trabalhava Duff McKagan, que depois se tornou famoso e milionário como baixista do Guns n’ Roses. Pavitt lembra-se de uma conversa entre os dois na qual Duff teria dito que estava se mudando para Los Angeles para tentar ter uma carreira musical. “It was indicative of just how impossible it was to make music a career in Seattle”, reflete Pavitt (apud Ibidem, p. 68).

Além do EP de estreia do U-Men, outros dois discos podem ser considerados marcos dessa fase embrionária do grunge. O primeiro é o EP “Come on Down”, do grupo Green River (o nome é uma “homenagem” ao serial killer Gary Ridgway). Lançado em maio de 1985 pelo selo independente Homestead, de Nova York, o disco não teve nenhuma repercussão. Somente anos mais tarde é que “Come on Down” e o Green River seriam lembrados pelo fato de que suas músicas já apostavam numa sonoridade próxima ao grunge. O Green River, que acabou em 1988, também se tornou referência por ter tido na formação os músicos Mark Arm e Steve Turner, que formaram o grupo Mudhoney; e Jeff Ament e Stone Gossard, que fundariam também a banda Mother Love Bone e depois o Pearl Jam.

"Deep Six" é a primeira coletânea de bandas de Seattle, lançada em 1986

Outro disco fundamental é a coletânea “Deep Six”, lançada em março de 1986. A coletânea, o primeiro lançamento do recém-criado selo C/Z Records, de Seattle, reuniu as bandas U-Men, Green River, Soundgarden, Melvins, Malfunkshun e Skin Yard. A tiragem foi de 2 mil cópias. O álbum recebeu uma série de críticas negativas das próprias bandas que tocaram nele, descontentes com a qualidade do som. A verdade é que se o grunge não tivesse se tornado um fenômeno, o álbum já estaria esquecido há muito tempo. Segundo Chris Hanzsek, um dos fundadores da C/Z Records, a maioria das críticas têm fundamento, porém ele acredita que “Deep Six” cumpriu o seu papel, que era mostrar que “havia vida” em Seattle (apud YARM, 2011, p. 80).

Daniel House, da banda Skin Yard, também vê a coletânea como algo importante, mesmo que não tenha vendido “merda nenhuma”, pois em geral ninguém dava a mínima ao som que era feito em Seattle. “Everything that the bands on Deep Six were doing was basically a ‘fuck you’ to the popular music of the time”, resume Daniel House (apud Ibidem, p. 81). Mas, embora a repercussão tenha sido mínima, o músico considera que o disco motivou outras pessoas de Seattle a formarem bandas, sendo que muitas delas apostaram nas guitarras pesadas tocando um som mais sombrio ou raivoso. Muitas dessas bandas que teriam sido inspiradas pelo “Deep Six” estariam no disco Sub Pop 200, da gravadora Sub Pop, que foi a responsável por colocar Seattle no mapa do rock.

Sub Pop rock city!

É bastante provável que a cena musical de Seattle não passaria mesmo de um germe cultural se não fosse por Bruce Pavitt e Jonathan Poneman, fundadores do selo Sub Pop, criado em 1986.

Aquilo que se tornaria a Sub Pop teve início em 1980, quando Bruce Pavitt vivia em Olympia (capital do Estado de Washington). Lá, ele criou o fanzine Subterranean Pop, no qual escrevia sobre bandas independentes. Na segunda edição, o nome da “revista” foi abreviado para Sub Pop e logo ela passou a lançar coletâneas em fita K-7 com músicas de grupos underground de distintas regiões dos Estados Unidos. Esse trabalho continuou até 1983, quando Pavitt mudou-se para Seattle, fechou o fanzine e passou a assinar uma coluna de música no jornal local The Rocket. Três anos depois, ele decidiu fazer algo parecido com o que havia feito em fitas K-7, mas dessa vez reunindo um punhado de bandas em um disco de vinil. Assim, em 1986 foi lançada a coletânea “Sub Pop 100”, que trazia entre os destaques a banda nova-iorquina Sonic Youth, já na época uma referência para o som alternativo.

“Sub Pop 100” vendeu cerca de 5 mil cópias, o que encorajou Pavitt a continuar. Em 1987, ele lançou o novo EP do Green River, “Dry as a Bone”, e por fim aceitou a proposta de Jonathan Poneman para juntos criarem um selo para gravar as bandas de Seattle e arredores.

Os primeiros lançamentos foram o single “Hunted Down"/"Nothing to Say" e o EP “Screaming Life”, ambos do Soundgarden, seguidos pelo single “Touch Me I’m Sick” e o EP “Superfuzz Bigmuff” do Mudhoney, e “Love Buzz”, do Nirvana. Ainda em dezembro de 1988, a Sub Pop lançou uma coletânea em vinil triplo, chamada “Sub Pop 200”. O disco contava com 20 canções de duas dezenas de bandas, entre elas Nirvana, TAD, Green River, Screaming Trees, Mudhoney e Soundgarden, esta com a profética faixa “Sub Pop Rock City”!

Famoso logo da gravadora Sub Pop

Sem dinheiro para promover individualmente cada grupo do selo, os donos da Sub Pop usaram uma estratégia que se provou extremamente correta. A exemplo de gravadoras como a Motow (de black music) e a Blue Note (de jazz), a Sub Pop trabalhou arduamente para criar uma identidade própria, tanto musical quanto visual. Não é a toa que todos os primeiros singles do selo tinham layout semelhante, com uma tarja preta no alto da capa, onde em fontes simples apareciam o nome da banda, o título do disco e a logomarca do selo. Abaixo dessa tarja, quase sempre a imagem que ilustrava a capa era uma fotografia da banda tocando ao vivo feita por Charles Peterson (um dos pioneiros no registro em fotos da cena grunge). Na contracapa os créditos para o produtor: Jack Endino.

Divulgar a logomarca da gravadora era a prioridade. Onde quer que houvesse um produto da empresa, o selo Sub Pop estaria em evidência. Uma dos itens mais procurados eram as camisetas com a logomarca da gravadora, que no início vendiam até mais que os próprios discos. “We learned early on that probably the best way we could spend promotional money was to make a profit having other people wear our logo”, ironiza Pavitt (apud SUB POP, 2008).

Outra estratégia de mercado rentável da gravadora era lançar seus singles de sete polegadas em edições limitadíssimas, o que provocava uma corrida dos aficionados às lojas para garantir suas cópias antes que elas esgotassem. Logo depois, com a procura crescente do público, a Sub Pop criou o “Singles Club”. O interessado fazia uma assinatura de um ano, ou seja, pagava adiantado para a gravadora e mensalmente recebia pelo correio um single em tiragem limitada e inédito. Com isso a Sub Pop cortejava os fãs, que tinham em mãos um material que outros colecionadores dificilmente encontrariam. Em 1990, o “Singles Club” tinha cerca de 2 mil assinantes.

Um dos acontecimentos que mudaram os rumos da Sub Pop e da cena de Seattle ocorreu quando Pavitt e Poneman tiveram o insight de pagar uma viagem para o jornalista inglês Everett True, da então renomada revista Melody Maker, conhecer o que estava acontecendo na cidade. Por dias seguidos, True foi generosamente abastecido pela Sub Pop com garrafas de bebida, entrevistou bandas e foi a shows estrategicamente agendados. O objetivo era impressionar o jornalista para fazê-lo acreditar que Seattle tinha uma grande cena musical, onde no intervalo de uma semana era possível assistir a vários shows em locais diferentes, o que usualmente não acontecia. “We got to create our own myth”, justifica Pavitt (apud YARM, 2011, p. 191).

True parece ter percebido a falsidade da situação. Anos mais tarde, ao falar sobre a visita a Seattle, ele afirmou que os donos da Sub Pop eram os mais charmosos e eloquentes mentirosos que já havia conhecido. “I just thought it was hilarious that everybody lied. (...) And I printed it because that’s funny”, recorda o jornalista (apud Ibidem, p. 190).

O caso é que a matéria de True, publicada na revista Melody Maker em março de 1989 com o título “SUB POP Seattle: rock city”, aguçou o interesse dos ingleses. O artigo afirmava que a cena musical de Seattle era a mais interessante que havia surgido em qualquer cidade nos últimos dez anos. O jornalista escreveu ainda que era na forma caótica e pouco profissional da relação entre as bandas e a Sub Pop (“more a school for learning than a record label”) que residia a força da cena (TRUE, 1989).

Matéria de Everett True publicada pela Melody Maker em março de 1989

Mais importante de tudo, a reportagem carimbou a cena de Seattle como um novo gênero de rock: o grunge, palavra que apareceu duas vezes na matéria para descrever as músicas do Mudhoney. A palavra grunge, que literalmente significa algo “sujo” ou “chato”, já havia sido usada pelo jornalista Lester Bangs na década de 1970 para descrever um som mais pesado. Mark Arm, vocalista do Mudhoney, escrevia a palavra como adjetivo em resenhas de discos que ele publicava em fanzines no início dos anos 1980. Bruce Pavitt, assim como tantos outros em Seattle, também usava bastante a palavra para se referir a um tipo específico de música. Mas, foi depois da matéria na Melody Maker que o termo realmente “colou”.

Definitivamente, o “golpe” dos donos da Sub Pop ao fechar o acordo com a revista inglesa havia dado certo. A ideia era reproduzir o que havia feito Jimi Hendrix duas décadas antes. Nascido em Seattle, o então desconhecido guitarrista mudou-se para a Inglaterra e lá construiu sua fama, para depois ver sua música importada para os Estados Unidos. Foi mais ou menos o mesmo que aconteceu com a Sub Pop e suas bandas: primeiro a fama na Europa, depois o reconhecimento do público norte-americano. Após a publicação, turnês de bandas da Sub Pop pelo circuito underground europeu passaram a ser cada vez mais constantes, o que despertou o interesse de boa parte da imprensa especializada no Velho Continente, impressionada pela energia das apresentações e qualidade das composições. Como consequência, o público dos Estados Unidos também passou a olhar e ouvir o som produzido em Seattle com mais atenção.

Mainstream

A primeira banda grunge a assinar com uma grande gravadora foi o Mother Love Bone, que no início de 1989 lançou o EP “Shine” pela Polygram. O acordo entre a banda e gravadora mereceu um longo artigo escrito pelo jornalista Richard T. White no The Rocket. Intitulado “The Art of the Deal: How Mother Love Bone got one of the biggest record deals of the year”, o texto relatava o quanto surpreendeu a todos em Seattle o fato de uma banda da cidade ter atraído o interesse de uma gravadora. Por outro lado, o jornalista já tocava em um assunto delicado, chamando a atenção sobre uma nova realidade daquela cena musical: a partir de agora, não seria apenas arte, mas também negócio. White alertava: “How a young band develops and reacts to the powerful influences that business, success, and growing popularity can impose is critical to their continued survival” (WHITE, 1989).

Mas o futuro foi algo com que o Mother Love Bone fatalmente não precisou se preocupar. Em 19 de março de 1990, dias antes de lançar o primeiro álbum do grupo, o vocalista Andrew Wood morreu de overdose de heroína, fato que fez com que o disco “Apple” chegasse às lojas somente meses mais tarde. Com o fim do Mother Love Bone, o baixista Jeff Ament e o guitarrista Stone Gossard formaram o Pearl Jam.

Mother Love Bone foi a primeira banda da Seattle a assinar com uma grande gravadora

O Soundgarden foi outra das primeiras bandas a fechar contrato com uma major, a A&M Records, para lançar em 1990 o álbum “Louder Than Love”. O disco não causou impacto maior e teve vendas razoáveis, assim como o álbum “Uncle Anesthesia”, que o Screaming Trees lançou em 1991 quando deixou de ser independente para assinar com a gravadora Epic.


O mérito de ter um primeiro grande sucesso e se projetar como uma banda que poderia ter uma carreira consistente foi do Alice in Chains, que em 1990 lançou seu primeiro álbum, “Facelift”. Meses antes, o grupo havia lançado também pela Columbia o EP “We Die Young”, cuja faixa-título virou hit nas rádios de rock estadunidenses. As vendas iniciais do álbum “Facelift” foram fracas, chegando a cerca de 40 mil cópias nos primeiros seis meses. O interesse pelo disco cresceu depois que a MTV incluiu o vídeo da música “Man in The Box” na programação diária. Na metade de 1991, “Facelift” alcançou a posição 42 da parada da Billboard e assim foi o primeiro trabalho de uma banda grunge certificado como disco de platina e platina dupla, pela venda de 2 milhões de exemplares somente nos Estados Unidos. Isso dá bastante crédito à afirmação de Nick Terzo, executivo da Columbia, sobre como o grunge se tornou tão popular:

Alice In Chains were the first band to have radio sucess in that movement, and that’s fact. It’s been revised since, but the fact of the matters is, “Man in the Box” broke down tons of doors. The album came out in August 1990, but radio started playing “Man in the Box” in early 1991. And after that, their song “Would?” broke down doors on alternative radio – and the Nirvana went right through. (apud YARM, 2011, p. 278)

Se o primeiro grande sucesso coube ao Alice in Chains, não só o maior hit, mas também o posto de maior representante da era grunge coube ao Nirvana. A banda nasceu oficialmente em 19 de março de 1988, na pequena cidade de Aberdeen, próxima a Seattle. O Nirvana estreou com um álbum em 1989. Lançado pela Sub Pop, “Bleach” foi um pequeno fenômeno no circuito underground, credenciando a banda para circular livremente entre a turma alternativa. O disco também rendeu a primeira turnê europeia do Nirvana.

O ano de 1990 foi fundamental para a carreira da banda. Descontente com o rendimento do baterista, o grupo deu adeus a Chad Channing e chamou para o seu lugar Dave Grohl, criando a formação clássica do Nirvana. Kurt também não estava satisfeito com a gravadora Sub Pop e passou a enviar dezenas de fitas demo a várias gravadoras. Em abril de 1991, a isca foi mordida pela DGC, um braço da gigante Geffen Records, que também havia contratado algum tempo antes a banda Sonic Youth, ícone do cenário alternativo.

“Nevermind” foi gravado entre maio e junho de 1991. O orçamento inicial para a gravação era de 65 mil dólares, mas até ser finalizado o custo subiu para 120 mil, valor infinitamente maior do que os 600 dólares gastos na produção de “Bleach”. O nome “Nevermind” surgiu de uma conversa entre Kurt e o baixista Krist Novoselic. Numa tradução livre, o título do disco é algo como “deixa pra lá” ou “esqueça isso”, o que Kurt entendia ser uma metáfora do seu estilo de vida. “Nevermind” também remetia a um verso de “Smells Like Teen Spirit”, a música que estava se tornando a mais falada durante as gravações, embora inicialmente a banda achasse que o maior sucesso seria a faixa “Lithium”.

Nirvana mergulhado no sucesso do disco "Nevermind"

O Nirvana dedicou um bom tempo para a produção da capa. Kurt teve a ideia de colocar um bebê nadando atrás de uma nota de um dólar. Era uma piada da banda a respeito de si mesma, que ao abandonar o selo independente Sub Pop teria se vendido, interessada no dinheiro fácil das grandes gravadoras.
Em 24 de setembro de 1991 “Nevermind” chegou às lojas. Em uma semana a prensagem inicial de 50 mil cópias esgotou. Um mês depois, o álbum chegou à marca das 500 mil cópias comercializadas. Ainda em outubro, a MTV incluiu o clip de “Smells Like Teen Spirit” em sua programação normal. As boas vendas continuaram e em 11 de janeiro de 1992 “Nevermind” chegou ao primeiro lugar da parada da Billboard, ultrapassando “Dangerous”, do astro Michael Jackson. O Nirvana havia chegado ao topo e com ele a cena de Seattle também.

Grupos como Soundgarden, Screaming Trees e Alice in Chains, que lançaram discos por grandes gravadoras antes, mas sem o mesmo impacto, tornaram-se conhecidos da noite para o dia. Dá-se ênfase ao Pearl Jam, que lançou seu primeiro álbum, “Ten”, cerca de um mês antes de “Nevermind” e teve vendas iniciais modestas, mas ao longo de 1992 conseguiu chegar à segunda posição da parada da Billboard.

O fenômeno

Nos três anos seguintes ao lançamento do segundo disco do Nirvana o grunge predominou na cultura pop. As gravadoras realizaram uma busca impressionante atrás de outras bandas que pudessem ser associadas ao fenômeno, sendo elas de Seattle ou não. Sonic Youth, Dinosaur Jr., Red Hot Chili Peppers, Butthole Surfers, Smashing Pumpkins, Stone Temple Pilots, L7 e tantos outros grupos de diversas partes dos Estados Unidos, a grande maioria com um histórico de anos no circuito underground, foram associados ao grunge e contratados a peso de ouro pelas gravadoras.

Em 1992 foi lançado o filme “Singles”, cuja versão brasileira recebeu o nome de “Vida de Solteiro”. Dirigido por Cameron Crowe, as gravações foram finalizadas ainda em 1991, antes do sucesso do Nirvana. Porém, a Warner Bros. estava relutante em lançá-lo, pois desconfiava da força comercial do filme cuja história se passava em Seattle e contava a vida de jovens casais tentando conciliar seus relacionamentos amorosos com suas expectativas profissionais ou artísticas. Com o sucesso repentino de bandas como Pearl Jam, Soundgarden e Alice in Chains, o estúdio decidiu lançar o filme em setembro de 1992. E seria besteira não lançá-lo, afinal vários músicos desses grupos apareciam na trama, que por sinal conta com uma trilha sonora impecável em se tratando de música grunge.


Mas, fora o campo musical, foi o campo da moda que o grunge mais influenciou. Camisas baratas de flanela xadrez, coturnos, jeans rasgados, roupas largas e gorros que normalmente nenhum estilista sério prestaria atenção, de repente estavam vestindo modelos famosas em editoriais de moda ou em desfiles nas principais passarelas da alta-costura. Kim Thayl, guitarrista do Soundgarden, lembra que quando se mudou de Chicago para Seattle em 1981, em termos de moda as pessoas que viviam no Noroeste dos Estados Unidos estavam uma década atrasadas, com corte de cabelo com mullets e roupas dos anos 70 (apud YARM, 2011, p. 54). Portanto para ele, ver o estilo grunge como tendência em moda, sendo vendido em butiques de alta classe, era quase inacreditável.

The height of absurdity? Gosh, one of the first things that comes to mind is the Vogue spread about grunge fashion. Having models walking the runways in Milan in some kind of flannel skirts – I embraced it, on some level, because there’s an element of parody in it. (apud Ibidem, p. 351)

Hoje, o grunge faz parte da história da moda, aparecendo nas publicações especializadas como referência ao lado de nomes de estilistas como Coco Chanel, Valentino Garavani, Hubert de Givenchy e tantos outros.
   
GRUNGE: Palavra de origem inglesa que significa sujo. Nos anos 70, grunge foi usado também como mau, feio ou chato. No início dos anos 90, apareceram em Seattle, Estados Unidos, bandas de rock pesado como Nirvana e Pearl Jam, cujo estilo, chamado grunge, foi logo absorvido pela moda. Camisetas superlargas, gorros de lã, camisões em flanela xadrez e botinas com meias caídas faziam parte do estilo, que inspirou o estilista americana Marc Jacobs a lançar uma coleção para a marca Perry Ellis em 1992. Marc Jacobs foi chamado de guru do grunge pelo jornal americano Women’s Wear Daily ao apresentar a coleção, em modelos que vestiam vestidos florais completados por camisas xadrezes e coturnos do exército. Sua ousadia, no entanto, não conquistou a clássica Perry Ellis, que o demitiu em 1992. (...) O estilo grunge inspirou inúmeras outras marcas de roupas em todo o mundo e, até hoje, as antes tradicionais camisas xadrezes dos lenhadores canadenses passaram a ser sinônimo do estilo de Seattle. (SABINO, 2007, p. 305)

A indústria cultural, já na metade do século XX, identificou uma possibilidade de lucro a partir da rebeldia juvenil, possibilitado pelo comércio de uma diversidade de produtos, desde roupas e discos até carros e motocicletas. Como notou Beatriz Sarlo, desde a década de 1950 “o mercado ganha relevo e corteja a juventude, depois de instituí-la como protagonista da maioria dos seus mitos” (SARLO, 2004, p. 40).

É evidente que o grunge não foi a primeira e nem a última cena de rock cujo estilo de vestir dos músicos foi apropriado pelo mundo da moda. Isso já havia acontecido na primeira geração do rock and roll na década de 1950, embora de forma bem menos intensa. Já na década seguinte, quando a contracultura hippie estava no auge, as roupas com estampas coloridas, jeans, saias em tecido florido, faixas na cabeça e cabelos longos que formavam um modo de vestir desleixado foram fartamente explorados pelo segmento da moda. Esse vestuário, assim, foi usado também por aqueles que nem de perto compartilhavam o estilo de vida alternativo proposto pelos hippies.

O visual punk na segunda metade da década de 1970 foi também altamente explorado pelo campo da moda e não haveria como ser diferente. Afinal, o modo de vestir mais conhecido dos punks (cabelos curtos e “espetados”, coturnos, jaquetas e calças de couro ou jeans rasgados) nasceu dentro de uma butique de roupas em Londres, de propriedade de Malcolm McLaren e Vivianne Westwood que, dizem as más línguas, juntaram alguns rapazes e formaram a banda Sex Pistols apenas para os músicos servirem de manequins vivos para as peças de vestuário que eram vendidas na loja Sex.

Esta relação contraditória dos movimentos contraculturais e o sistema capitalista dá motivos para uma enorme celeuma, pois é difícil delimitar até onde vai a contestação e a rebeldia e onde começam os negócios. Para os punks londrinos do Class War na década de 1980, “tendências musicais, os jornais de música e a indústria musical são o exemplo mais vívido de como o mercado moderno trabalha de acordo com o princípio de que ‘se algo se mexe, vende’” (JORNAL DO CLASS WAR, apud HOME, 1999, p. 149). Já Contardo Calligaris acredita que “não houve e não há contradição nenhuma entre a significação da contracultura e os imperativos de desenvolvimento do capitalismo contemporâneo” (1998, p. 09).
Para Tupã Gomes Corrêa, um músico de sucesso torna-se um símbolo de identidade, nos quais os fãs tendem a se espelhar, assimilando não apenas o conteúdo de suas músicas, mas também roupas, calçados, corte de cabelo, etc., criando um amplo conjunto de significados.

Assim, música e vestuário encontram um caminho comum, servindo um de suporte ao outro e engrossando mutuamente a extensa malha de mercado mediante a qual se produzem e se oferecem novos produtos. Embora os critérios de seleção sejam distintos no caso do disco e no caso da moda, o tratamento mercadológico encontra em ambos um objetivo comum. Nada, em qualquer um dos dois produtos, deixa de ser planejado sem levar em conta a fisionomia do respectivo mercado. (...) Nesse ciclo, transformada em mercadoria para venda em escala, a música perde significado e a identidade com o movimento inicial. (CORRÊA, 1989, pp. 100 e 102).

Editorial de moda grunge de 1992

A exposição maciça das bandas de Seattle na mídia, seja de suas músicas, de imagens em fotos em revistas ou vídeos na televisão, e do estilo grunge de vestir serviu de combustível para muitas polêmicas. Vindos do cenário underground influenciado pela lógica punk em que o rock star system é visto negativamente, músicos de muitas das principais bandas de Seattle tiveram dificuldades para lidar com a fama repentina. Kurt Cobain e o Nirvana faziam questão de deixar claro a antipatia pelas grandes empresas da mídia, principalmente depois que a revista Vanity Fair publicou reportagem em que supostamente Courtney Love teria admitido uso de heroína no início da gestação da filha, antes de saber que estava grávida. Contudo, várias também foram as concessões feitas pela banda, que em 1993 aceitou gravar um especial acústico no famoso “MTV Unplugged” e depois ter um show “elétrico” exibido pelo canal de música. Também aceitou participar de uma reportagem de capa para revista Rolling Stone em abril 1992, na qual a publicação afirmava que Seattle era a “nova” Liverpool, cidade onde surgiram os Beatles.

O Pearl Jam também teve problemas para lidar com a condição de estrela de rock. Inicialmente, o grupo teve grande exposição para divulgar o primeiro álbum “Ten”, inclusive com a gravação de um show para o “Unplugged MTV”. Depois, sempre mais insegura, a banda passou a recusar entrevistas. A partir do segundo disco “Vs.”, de 1993, o Pearl Jam parou de gravar videoclips, o que só voltou a ser feito em 1998, com a música “Do The Evolution”, presente no quinto disco da carreira, “Yield”. Ainda assim, o vídeo não mostrava os músicos, que somente voltaram a aparecer em videoclips a partir de 2002.

Dois anos depois da “explosão” do grunge como fenômeno de massa, Eddie Vedder apareceu na capa da revista Time na edição de 25 de outubro de 1993, cuja chamada destacava: “ALL THE RAGE: angry young rockers like Pearl Jam give voice to the passions and fears of a generation” (TIME, 1993). O vocalista, que não concedeu entrevista para a reportagem, ficou ainda mais irritado por ter aparecido na capa sem os companheiros de banda e por ter sido creditado como a voz de uma geração.

Eddie Vedder na capa da revista Time em 1993

Se Jeff Ament e Stone Gossard não tiveram tempo de se preocupar com o aviso do jornalista Richard T. White sobre as relações “perigosas” entre arte e negócios quando estavam na banda Mother Love Bone quando esta assinou com uma grande gravadora, o Pearl Jam foi um campo fértil para eles pensarem a respeito. O tema era tão caro à maioria dos integrantes da banda que o baterista Dave Abbruzzese foi expulso por supostamente não se encaixar no estilo alternativo do grupo. “Dave was a different egg for sure. (...) He was more comfortable being a rock star than the rest of us. Partying, girls, cars. I don’t know if anyone was in the same space”, justificou o baixista da banda, Jeff Ament (apud YARM, 2011, p. 476).

Ao negar a acusação de ser um entusiasta do estilo de vida de uma estrela de rock, Dave Abbruzzese explicita o quão confusa era essa antítese entre ser um músico famoso e, aparentemente, não aceitar essa condição.

That statement from him is incredibly disrespectful, and untrue, as well. It’s such a crock of shit. (...) But he makes it sound like I was the odd man out; it paints a picture of me as being pretentious. Shit, we worked our asses off to be successful. We were rock stars. Who cares? Jesus Christ. Doing articles where you’re on the cover, and the article is how you don’t wanna be on the cover. That’s pretentious hypocrisy. (apud Ibidem, p. 476)

Uma análise bastante plausível sobre como a maioria das grandes bandas lidaram com o sucesso repentino foi feita pelo vocalista do Soundgarden, Chris Cornell. Para ele, embora negassem, o fato é que a maioria dos artistas gostava da atenção e do assédio que estavam recebendo.

When all the bands in the Seattle music scene went o to major labels and bigger sucess, there was this kind of “Let’s pretend that we don’t wanna be doing this and someone’s sort of forcing us to do it” attitude. I think everybody had it, including members of my own band. The only band I didn’t see acting like that was Alice in Chains, because they didn’t come from that indie-rock world. Everybody else sort of followed the punk-rock bible, and it wasn’t part of punk rock to be on a major label, to make money, to make vídeos, to spend more that $ 2.000 on making a record, to be on tour bus instead od driving a van. And yet, that’s what everyone was doing. (apud Ibidem, p. 404)

Steve Albini, produtor conhecido pelo seu trabalho com bandas de rock independentes e que produziu “In Utero”, último disco de estúdio do Nirvana, em 1993, é bastante pessimista sobre o assunto.

Todas essas bandas que uma vez foram independentes eram abusadas e levadas para a cultura mainstream e eu não via isso como uma vitória artística. Eu entendia que o mainstream estava vendo algo valioso no underground. Eles viam que era possível fazer dinheiro e exploraram isso, adotando os aspectos mais superficiais da cultura underground e usando esses aspectos como um pincel de estilo, com o qual podiam pintar quem quisessem. (...) Algumas pessoas viram aquilo como uma grande realização por parte do underground, como se estivessem fazendo uma invasão cultural. Eu via aquilo como usurpação insultante de uma cultura que eu acreditava ter seu próprio valor. (apud SINKER, 2009, p. 124)

Fim

O suicídio de Kurt Cobain praticamente decretou o fim da era grunge, pelo menos enquanto fenômeno pop. O fim trágico do líder do Nirvana e todas as histórias sobre o envolvimento dele e outros artistas da cena com drogas pesadas acabaram associando o gênero musical a um estilo de vida decadente. A morte por overdose do cantor do Alice In Chains, Layne Stanley, ocorrida em abril de 2002, também não foi positivo para a imagem do grunge.

Corpo de Kurt Cobain foi encontrado em 08 de abril de 1994

A partir da segunda metade dos anos 1990, a cena de Seattle foi recebendo cada vez menos atenção. As gravadoras e a mídia especializada voltaram seus ouvidos para a música feita em outros lugares e em outros estilos. Ainda em 1994, bandas de punk californiano como Green Day, Rancid e Offspring tiveram grande sucesso, o que trouxe um interesse inédito para esta cena musical, que também já vinha se desenvolvendo desde os anos 1980. Depois, foi a vez de bandas que misturavam rock e hip-hop, como Limp Bizkit e Korn, serem os novos fenômenos de venda no final da década de 1990. A partir de 2001, Strokes e White Stripes reacenderam o interesse do público por um rock mais básico, cheio de referências aos anos de 1960 e 1970. Porém, desde a era grunge, nenhuma cena musical teve a mesma atenção recebida pelas bandas de Seattle.

Enquanto fenômeno da cultura pop, o grunge ficou datado como um evento da primeira metade da década de 1990. Mas muitas bandas daquela época estão na ativa ainda hoje. O Pearl Jam é uma das maiores bandas do planeta. O Mudhoney tem uma carreira ininterrupta e em 2013 lançou um dos seus melhores discos, “Vanish Point”. O Alice in Chains, com um novo vocalista, retornou aos palcos em 2005 e já lançou dois discos, o mais recente também neste ano. O Melvins está comemorando 30 anos de carreira com o lançamento de dois discos inéditos em 2013. O Soundgarden, após mais de uma década, também retornou às atividades e, em 2012, lançou um disco de inéditas. Este ano, o Nirvana lançou uma edição luxuosa em comemoração aos 20 anos do álbum “In Utero”, a exemplo do que aconteceu em 2011 para celebrar as duas décadas de “Nevermind”.

A gravadora Sub Pop, em julho deste ano, realizou uma série de eventos em Seattle para comemorar 25 anos. Após passar por dificuldades financeiras, em 1995 ela vendeu 49% de suas ações para a Warner Music Group, o que garantiu a estabilidade do selo. Hoje a Sub Pop possui um catálogo de variados artistas e estilos e continua sendo um dos selos mais respeitados quando o assunto é música alternativa.

Passadas duas décadas do auge, é cada vez maior, pelos menos nos Estados Unidos, o número de livros e documentários que procuram dissecar a cena grunge como um grande acontecimento que virou o rock underground às avessas e fez dele um fenômeno da cultura pop. Infelizmente, no Brasil ainda é pequeno o número de publicações a respeito do grunge. Assim, espero que este pequeno artigo tenha dado uma pequena contribuição aos interessados pelo tema.

Bandeira da Sub Pop no topo da torre Space Needle

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