sábado, 20 de fevereiro de 2010

Quando o jornalismo gonzo morreu


Uma bala disparada contra a própria cabeça. Deve ter feito barulho à beça. Foi assim que o estadunidense Hunter S. Thompson, o pai do jornalismo gonzo escolheu para dar fim à sua vida maluca há exatos cinco anos, no dia 20 de fevereiro de 2005, aos 67 anos de idade. O jornalista, carinhosamente conhecido como Mr. Gonzo e que ficou famoso com suas reportagens ácidas e caóticas regadas a álcool e doses cavalares de drogas, estava em sua casa em Woody Creek, no estado norte-americano do Colorado. Falava com a esposa ao telefone quando disparou o tiro. Nos últimos anos, Thompson - que era aficionado por armas - trabalhava como comentarista esportivo para a ESPN.

Nascido em 1937, Thompson estudou jornalismo na Universidade Columbia, em Nova York. Era fã do escritor Ernest Hemingway, que em 1961 também se matou com um tiro de fuzil. Garoto-problema, ele teve de se alistar na Força Aérea norte-americana para escapar de uma temporada na cadeia. Avesso às normas rígidas do Exército, onde já atuava como jornalista, no início da década de 60 ele tornou-se repórter free-lancer e passou uma temporada na América do Sul, período em que escreveu reportagens principalmente sobre a Colômbia, Peru e Brasil - fixou residência no Rio de Janeiro em 1963, ficando até poucos meses antes do golpe de 1964. Durante o tempo em que viveu na Cidade Maravilhosa, Hunter S. Thompson sentiu no ar o clima de opressão que o Exército já exercia sobre os brasileiros antes mesmo de tomarem o poder, conforme apontou em reportagem sobre um atentado que as Forças Armadas promoveram contra uma boate, matando e ferindo vários civis.

Até então, o jornalista cobria algumas pautas incomuns, porém nada extraordinárias. A fama começou a surgir de verdade em 1966, após a publicação de uma grande reportagem sobre os Hell’s Angels, gangue de motoqueiros que na época aterrorizava os Estados Unidos e era sinônimo de orgias, drogas e violência. Doido como ele só, Thompson fez amizade com os motoqueiros, com quem conviveu na estrada por cerca de um ano, até levar uma surra que lhe mandou direto para o hospital. A aventura transformou-se no seu primeiro livro: Hell’s Angels - Medo e Delírio Sobre Duas Rodas, que ganhou edição nacional em 2004 pela Editora Conrad, quase 40 anos após a sua publicação original.

Gonzo

Apesar de ter características do new journalism - como a inclusão do repórter enquanto personagem dos fatos sobre os quais escreve, com um texto bastante influenciado pela literatura -, o livro Hell’s Angels... praticamente segue os padrões de uma reportagem convencional, se comparado com o que Hunter escreveria a partir da segunda metade da década de 60. Foi nessa época que ele entrou de cabeça no universo encantado imaginado por Timothy Leary [o guru da ideologia lisérgica], abusando não apenas dos doces psicodélicos, mas também de qualquer elemento químico que “fritasse” cérebro e transformasse a realidade objetiva em viagens coloridas, degradantes e perigosas. Essas experiências depois eram deliciosamente repassadas ao papel, para o medo dos conservadores e para o delírio dos malucos da época.

O reconhecimento e a fama de porralouca incorrigível chegaram mesmo em 1972, com a publicação do livro Medo e Delírio em Las Vegas, que também foi lançado no Brasil em 2007. Acompanhado do advogado Oscar Acosta, Thompson transformou o que seria uma matéria comum de 250 palavras sobre uma tradicional corrida de motos de Las Vegas [a Mint 400] em um registro fantástico e jamais inigualável no qual descortinou a fragilidade do american way of life. Sucesso imediato, o livro é desde então um marco da contracultura da época.

Publicado inicialmente pela Rolling Stone – "a única revista dos Estados Unidos na qual eu poderia ter publicado o livro", declarou Thompson – Medo e Delírio em Las Vegas, inclusive, foi adaptado para o cinema em 1998, com Johnny Deep no papel principal e Benício del Toro como Acosta. Como Hunter S. Thompson certa vez disse sobre o seu livro mais famoso, é óbvio que Medo e Delírio... foi o resultado do uso compulsivo de todos os tipos de drogas imagináveis durante vários dias seguidos. "Só uma porra de um lunático escreveria um negócio como esse e alegaria ser tudo verdade", declarou o autor a respeito de sua obra-prima.

Já o auge da produção estritamente jornalística de Thompson - ou seja, aqueles textos publicados originalmente em revistas e jornais - está registrado no livro A Grande Caçada aos Tubarões, publicado nos Estados Unidos em 1979 e que no final de 2004 ganhou também uma inédita edição brasileira. A obra é uma coletânea de reportagens selecionadas pelo próprio autor. O início da decadência do presidente Richard Nixon, a inesperada chegada de Thompson a um vilarejo dominado por traficantes na Colômbia, relatos sobre iniciação do jornalista no LSD, uma entrevista quase fracassada com o boxeador Muhammad Ali, as viagens chapadas percorrendo os Estados Unidos em um conversível a 180 km/h, o pânico de cruzar fronteiras com o cérebro e a bagagem entupida de drogas são alguns dos assuntos presentes na obra.

Morte

Como acontece com os homens que vivem à frente do seu tempo, a morte de Hunter S. Thompson precipitou um grande interesse pelas obras e vida do autor. Uma espécie de revival de um momento maior que na verdade nem chegou a acontecer. São diversos livros, filmes, textos diversos retratando a vida e obra desse maluco incorrigível...

O pai do jornalismo gonzo não deixou descendentes na profissão. Muitos tentaram, mas ninguém chegou nem perto. Faltaram-lhes a mesma coragem, a disposição para o consumo de doses industriais de substâncias ilícitas, a capacidade de extrair do caos algo de consistência que não ficasse apenas em pura viagem ou conversa-mole de um junkie qualquer. Acima de tudo, faltou o estilo para fazer de si mesmo o que há de principal na notícia. Foi isso que Thompson fez em toda a sua vida. Transformou a si mesmo, o jornalista, no foco principal de suas matérias. Nos últimos anos, muitos afirmavam que ele havia se tornado escravo do seu passado. Para esses, deu a resposta.

A morte de Mr. Gonzo não poderia jamais ser comum. É claro que tinha que fazer barulho. É óbvio que tinha de ser chocante, definitiva e a seu modo. Personagem principal das pautas que cobriu, Hunter S. Thompson também foi protagonista da sua última história. Deu um nó no Cara lá de cima e decidiu qual a hora de colocar um ponto final em tudo. Gonzo até na hora de morrer...


NOTA SUICIDA

Em setembro de 2006, a revista norte-americana "Rolling Stone", que praticamente abriu as portas para Hunter S. Thompson nos anos 60, publicou um artigo do biógrafo oficial de Mr. Gonzo, Douglas Brinklçeu. Junto à matéria foi publicado aquele que teria sido o último texto deixado pelo jornalista, escrito quatro dias antes de seu suicídio. Com o título de "Football Season Is Over" ou "A Temporada de Futebol Acabou", Thompson justifica o fim de sua própria vida:

"Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de caminhar. Chega de diversão. Chega de nadar. Sessenta e sete. São 17 anos além dos 50. Dezessete a mais do que eu precisava ou desejava. Chato. Sou sempre desbocado. Sem diversão - para ninguém. Sessenta e sete. Você está se tornando mesquinho. Assuma sua idade avançada. Relaxe - isso não vai doer".


THOMPSON EM EDIÇÃO NACIONAL

Desde 2004, a Editora Conrad e a Companhia das Letras vêm publicando no Brasil alguns dos mais importantes títulos do jornalista Hunter S. Thompson. Abaixo, um tira-gosto do que você pode encontrar em uma livraria bem perto da sua casa.

*** HELL´S ANGELS: MEDO E DELÍRIO SOBRE DUAS RODAS - Um brutamontes andando numa moto chopper Harley-Davidson modelo 74, com cara de poucos amigos, cabelos compridos balançando ao sabor do vento, barba há meses por fazer. Como uniforme ele traja botas, uma calça Levi s engraxada e sebenta e uma jaqueta jeans sem mangas que traz estampada nas costas a imagem de uma caveira com duas asas. Acima do desenho a inscrição "Hell s Angels". Agora some este personagem a outros 100, 150 motoqueiros tão parecidos entre si trafegando por uma rodovia movimentada da Califórnia na década de 60, ziguezagueando entre os veículos e deixando atrás de si, além da poeira, um rastro de sangue e o odor da transpiração de litros e litros de cerveja. Com um ótimo faro para boas reportagens e uma predisposição involuntária para se meter em confusão, em 1965 Hunter S. Thompson pediu uma grana para o seu editor e depois de 12 meses voltou com uma incrível história sobre os Hell’s Angels. As festas, orgias, tretas com a polícia, as viagens de ácido e as incontáveis bebedeiras vividas com a gangue de motoqueiros mais malucos da história estão no livro "Hells Angels: Medo e Delírio Sobre Duas Rodas".

*** A GRANDE CAÇADA AOS TUBARÕES: HISTÓRIAS ESTRANHAS DE UM TEMPO ESTRANHO - Lançado originalmente em 1979, este livro é uma reunião de artigos escritos nas décadas de 60 e 70 para diversas publicações como Rolling Stone, Playboy, National Observer e New York Times. Divagações sobre a própria fama, comentários ácidos sobre a comunidade hippie, a violência dos militares no Brasil nos anos 60, corridas de motos e beatniks são alguns temas presentes na obra. Tudo, ou quase tudo, escrito ou rascunhado enquanto Hunter S. Thompson estava completamente doidão. "Olhando retrospectivamente para tudo isso, meu único sentimento pela pesca em alto-mar é uma absoluta e visceral aversão. Hemingway estava certo quando decidiu que uma submetralhadora .45 era a ferramenta adequada para pescar tubarões, mas estava errado quanto aos alvos. Por que atirar em peixes inocentes quando os culpados andam diretamente pelas docas, alugando barcos por 140 dólares ao dia para otários bêbados que se denominam pescadores esportivos?", pergunta Thompson depois de passar alguns dias num hiate rodeado por milionários naquilo que deveria ser uma matéria para a Playboy sobre pesca e acabou se tornando um guia de como passar pela alfândega dos aeroportos completamente chapado.

*** SCREWJACK - Hunter S. Thompson aprofundando-se mais na literatura, este pequeno livro apresenta três contos. Em "Mescalito" o autor conta sobre a sua primeira viagem com mescalina. Em "Morte de Um Poeta" narra uma visita bizarra a um casal de amigos. Já em "Screwjack" assume a personalidade de Raul Duke para narrar a sua estranha paixão por um... gato. Na introdução, Mr. Gonzo justifica a ordem de publicação dos contos: "creio que Screwjack deva ser o último & Mescalito o primeiro - de modo que a tensão dramática (& também a genuína esquisitice cronológica) possam crescer, como o Bolero de Ravel, até atingir um clímax mais rápido & ensandecido que arraste implacavelmente o leitor até o topo de um morro & de lá o atire de um penhasco". Publicado pela primeira vez em 1991.

*** RUM: DIÁRIO DE UM JORNALISTA BÊBADO - Primeiro romance de Hunter S. Thompson. Escrito ainda na década de 50, só acabou publicado em 1998. Com passagens estritamente biográficas, o livro conta a história de um jornalista de 30 anos vivendo entediado na América Latina. "Passamos as seis horas seguintes numa minúscula cela de concreto, na companhia de uns 20 porto-riquenhos. Não podíamos sentar, tinham mijado por todo o chão. Ficamos parados no meio da cela, distribuindo cigarros como se fôssemos representantes da Cruz Vermelha. Nossos companheiros tinham uma aparência ameaçadora. Alguns estavam bêbados, outros pareciam malucos. Enquanto ainda distribuíamos cigarros eu me sentia seguro, mas fiquei tentando imaginar o que aconteceria quando acabassem".

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Entrevista: Duda Calvin (Tequila Baby) e Oneide (Pelebrói Não Sei)


Resgatando mais um material do fundo do baú. Dessa vez uma entrevista com dois dos maiores nomes do punk rock nacional: os vocalistas Duda Calvin (da Tequila Baby) e Oneide Diedrich (Pelebrói Não Sei). Ela foi gravada em 18 de março de 2005, em Foz do Iguaçu, data em que as duas bandas se apresentaram no Country Club da cidade. Foram horas de conversa regadas a litros de cerveja. Tudo o que foi dito e que pode ser publicado (hehehehe...) segue no texto abaixo.
Boa leitura!

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Tequila Baby + Pelebrói Não Sei?
Country Club [Foz do Iguaçu] :: 18.03.05


O Country Club literalmente pegou fogo com a apresentação das bandas Tequila Baby e Pelebrói Não Sei?, dois dos maiores nomes do punk rock do Sul do Brasil. O clima do show já era dos mais positivos. Afinal, aquela seria a primeira apresentação da TB no Oeste do Paraná, algo que a banda já vinha tentando realizar há um longo tempo mas que somente agora durante a turnê do disco A Ameaça Continua acabou tornando possível. Por outro lado, o PNS? havia realizado sete dias antes, em um bar de Curitiba, um show acústico “mal tocado” [como os próprios músicos definiram a apresentação] para comemorar os 10 anos de vida. Uma semana depois eles estavam em Foz do Iguaçu, cidade que tem um ponto de destaque na história da banda. Isso porque, caso não bastasse o fato do guitarrista Joca Pelebrói e o vocalista Oneide Dee Diedrich já terem morado na cidade, os dois se conheceram durante uma viagem de ônibus no itinerário Foz-Capital, surgindo assim o embrião do PNS?.

Mas nem tudo estava perfeito. O negócio é que os dois grupos haviam se cruzado na estrada apenas uma vez, em setembro de 2000, quando abriram a apresentação de Marky Ramone & The Intruders em Curitiba. Na ocasião, segundo os próprios músicos, nada além de um simples “olá” ou coisa parecida havia sido trocado entre as bandas. Para piorar, existiam rumores de uma certa indisposição entre ambos. Quem sabia da história deve ter estranhado o que aconteceu naquela em Foz do Iguaçu.

O Pelebrói Não Sei? teria feito um show perfeito, não fosse o set curto. Com um bom público, Oneide e os “pelebrothers” da banda sentiram-se à vontade para desfilar suas canções invocadas – para não dizer clássicas. “Lágrimas Alcoólicas”, “Fantasminha” e “Mais Um Blá Blá” foram algumas delas. Em “Céu Sem Cor”, o vocalista deu-se ao direito a esquecer a letra e criar versos totalmente insólitos no meio da música como “agora que você está morta você se matou”, seguido de um sorriso canalha do tipo errei-e-não-tô-nem-aí.

Se o público já estava na mão, a casa foi mesmo abaixo quando Oneide convidou Duda Calvin, vocalista da Tequila Baby, para cantarem juntos covers de “O Dotadão” [Cascavelletes] e “Beat On The Brat” [Ramones]. Mas a rixa, ela não existia? A resposta é sim e não...

O fato é que qualquer possibilidade de intrigas entre Tequila Baby e Pelebrói Não Sei? foi desfeita horas antes do show, quando Oneide veio até a mesa do bar onde este escriba estava entrevistando Duda Calvin. Apresentações de praxe [por incrível que pareça, eles realmente não se conheciam pessoalmente], alguns minutos de conversa e qualquer mal entendido – originado de boatos absurdos fomentados por fãs na internet – virou fumaça. Assim como o legítimo charuto hecho en Paraguay que Oneide insistia em acender durante as cervejas que se seguiram.

De volta aos shows. Após a participação ao lado do Pelebrói Não Sei, Duda voltou ao palco do Country Club, agora escudado pela sua própria banda. Esta foi uma das primeiras apresentações com os novos membros Rafael [baterista] e Otto [baixo] e mesmo assim o TB não decepcionou. Enquanto o guitarrista James brincava de ser Chuck Berry, Duda rasgava a voz em canções já bem conhecidas como “Balada Sangrenta”, “Melhor Do Que Você Pensa” e “Sangue, Ouro e Pólvora”. Tudo intercalado por aquelas do último disco [“Sexo, Pássaros e Rock n’ Roll”, “Ralph” e “Vivendo em Loucura”].

Era uma noite única para o punk rock do Sul do Brasil. Só que foi demais para a estrutura do Country Club. Quando o guitarrista James começou a entoar os primeiros acordes de “51”, o sistema elétrico entrou em curto e um incêndio teve início logo atrás do palco. Os gaúchos saíram mais do que às pressas do palco e houve um pequeno tumulto enquanto o público escapulia pela saída de emergência [nada de grave, porém]. Apenas um final eletrizante para uma noite realmente quente na tríplice fronteira.

***

Mesa de bar

Como você percebe o cenário de rock hoje no país?
Duda:
Eu não sei se você nota isso. As pessoas não estão montando bandas hoje para ganhar grana? Quando montei a banda, eu era professor de História do 2º Grau. A banda, para mim, era um negócio que eu tocava sábado, para me divertir. Na gravação do segundo disco, em 1999, eu ainda estava nesse oba-oba. A partir daí que percebi que estava pagando minhas contas com o dinheiro ganho na banda e que estava sacaneando meus alunos. Não podia dar aula sexta, sábado e domingo porque tinha show. Foi natural, eu nunca insisti em fazer um discão para vender e viver de música. Se pegar A Ameaça Continua, não tem muitas músicas para tocar em rádio. O que é mais legal? Ter um disco com quinze músicas radiofônicas ou ter um com quatro radiofônicas e um monte de músicas só para louco, só para show? A fase de consumir mais discos é dos 12 aos 25. Há cinco anos, as bandas das quais a gente estava comprando discos não são as mesmas de agora. As clássicas continuam, mas as novidades que as mídias nos mostram não se sustentam. A música reggae tá na moda? Que bom, mas não pense que essas bandas de reggae daqui a cinco discos vão estar com o mesmo público. É natural esse tipo de coisa, só que a gente se ligou que, se continuasse fazendo músicas radiofônicas, ia entrar muito nessa história do comercial, seria prejudicial para a banda. Não nego que no Punk Rock até os Ossos a gente fazia cinco shows por semana. Agora estamos fazendo dois, mas está mais divertido.

Geralmente,as músicas que atingem um público maior são colocadas no início dos álbuns. Mas em A Ameaça Continua, não. Essas músicas estão da metade para o final. O cara não muito ligado em rock que ouviu Punk Rock até os Ossos, quando chegou na loja para ouvir A Ameaça Continua, deve ter tomado um susto...
Duda:
Isso foi proposital. Um soco na orelha. Porque depois de dez anos de banda... Sabe aquele lance de casamento, pai e mãe que nunca se separaram e que nunca vão se separar? Esse é o lance da Tequila Baby. A gente sabe que ela não vai parar de produzir.

Deixa eu te provocar. Você falou em casamento. Metade da banda se separou...
Duda:
Estava assim... Eu compunha muitas músicas, quase todas. É uma coisa de casamento. Eu tenho a minha mulher e a gente paga as contas juntos. Mas tem uma hora em que ela não quer mais pagar as contas, está a fim de namorar outra pessoa. Tudo bem. Só que eu continuo pagando minhas contas, fazendo meu trabalho. E os guris estavam mais a fim de investir no estúdio que eles têm em Porto Alegre e projetos do tipo misturar rap com rock, como eles falaram em algumas entrevistas. Só que para a Tequila Baby eu sei que não é essa a praia. Eu não entendo nada de rap, nada de reggae. Sei misturar sacanagens com coisas deprês e com vontades, histórias, viagens. É legal trabalhar com o imaginário das pessoas. Os garotos saíram da banda porque não estavam mais a fim de trabalhar com isso aí. A gente respeita, beleza. E ainda temos mais dez anos para tocar pela frente.

E o Oto e o Rafael, como eles têm segurado a onda?
Duda:
É um lance meio mulher nova, a gente se apaixona. Eles eram fãs da banda desde o primeiro disco. Já entraram no clima da banda, o que até é um mérito deles. Eu não sei se conseguiria em três semanas sacar todo o repertório do show. Eles viram muitas apresentações, mas um negócio é ver o show o outro é tocar de cabo a rabo. Se eu tivesse de ser o novo vocalista dos Raimundos, eu não saberia cantar 21 músicas.

Como eles estão lidando com essa coisa de, de repente, virar ídolo?
Duda:
Esse é o lance da Tequila Baby. Antes de ser ídolo, a gente é fã de rock’n’roll. Depois dos shows batemos papo com a galera, assinamos CD, conversamos sobre bandas que a gente gosta. Papo de fã para fã.

Vocês estão participando do maior tributo aos Ramones: um CD duplo que saiu por uma gravadora Argentina, com bandas de todo o mundo. Como vocês foram convidados?
Duda:
Tem uma galera na Argentina que já está conhecendo a Tequila. Então surgiu o convite de uma gravadora chamada Rockaway Records, que chamou mais duas bandas brasileiras para participar de um tributo mundial. A idéia é lançar no Brasil. Vai ter gente dos Estados Unidos, Alemanha, Europa, América do Sul, África e Ásia. Acho que vai sair por uma gravadora nacional. Hoje eu não sei te precisar data de lançamento, nada disso. O cara lá está sacando uns selos daqui. O disco saiu na Argentina no início de março e eu ainda não sei o que tem lá, é tudo novidade. A gente tocou uma música chamada “She Belongs To Me”, versão hardcore. O disco foi produzido por Ed Stasium, que é o cara que assinou grandes discos dos Ramones. O encarte foi feito pelo Tommy Ramone

Mas vocês estão com várias ligações com os Ramones. É o mesmo produtor que assina discos de vocês, Marky Ramone gravou junto e agora o Tommy Ramone...
Duda:
É o que eu te disse, a gente é muito fã de rock’n’roll. Nunca pensei que um dia falaria com um Ramone, que teria um cara dos Ramones que soubesse o meu endereço, meu telefone, que volta e meia liga, volta e meia manda e-mail. Estou muito feliz. Acho que esse é o lance do rock’n’roll. Devagarzinho. Hoje tem um show em Foz do Iguaçu. Estamos começando um trabalho no Paraná e eu espero que daqui a uns anos a gente esteja fazendo shows aqui como fazemos no Rio Grande do Sul.

Vou voltar um pouco ao assunto Ramones. Em 2000 vocês gravaram um cover para “The KKK Took My Baby Away” para um tributo a ser lançado por uma gravadora de Porto Alegre...
Duda:
Não, não. Iria sair pela Ataque Frontal mas não teve liberação pela Warner. A gente disponibilizou ela no site. É legal esse lance de ter músicas que nunca iremos lançar em disco existirem no site. O cara que é fã mesmo vai ter uma coisa diferente. É importante esse tipo de coisa porque os meninos e meninas que são fãs de rock, eles querem ter uma coisa diferente dos caras que vão comprar nas lojas. Eu, como fã dos Ramones, de rock, sempre gostei desse tipo de coisa... Quem acessar o nosso site vai encontrar coisas que não existem para vender. Clipes, uma música aqui e ali outra... Legal!

Voltando ao que a gente estava falando sobre a banda aqui no Paraná. Parece que a Tequila Baby tem uma certa dificuldade para emplacar aqui.
Duda:
Eu acho que tem muito fã no Paraná. Diria que é o terceiro estado com maior número de fãs da Tequila. Existe uma distância do Rio Grande do Sul para cá. Mas acho que a tendência são as rádios alternativas, os fãs começarem a divulgar a banda. A tendência é acontecerem shows. Não tem como segurar a onda. Por mais que digam que no Paraná as pessoas não gostam de rock’n’roll, isso é mentira. O Paraná é superfã de rock’n’roll. Vai chegar uma hora em que as pessoas que contratam show vão ter que se ligar que existem bandas a fim de tocar aqui e que existe um público gigante que gosta delas. A minha, a tua e a geração mais nova gostam de rock’n’roll e não querem saber de outros estilos musicais. Vai acontecer naturalmente, não se preocupem. Vocês que são de Marechal Cândido Rondon ou Francisco Beltrão estão fazendo um trabalho certo. Acho que a tendência é o interior ditar a regra para Curitiba.

Como está a Tequila Baby no cenário nacional?
Duda:
Eu vou resumir a coisa para você. A gente fez shows no interior da Bahia e cada show era para duas mil pessoas. Interior não é Salvador, é interior caatinga. Se a Tequila Baby coloca 2 mil pessoas no interior da Bahia, ela também coloca duas mil pessoas em Marechal Cândido Rondon. Na Bahia é mais difícil do que o Paraná para fazer show. Já ouviu falar de rock em Tocantins? Em Palmas foram 1,8 mil pessoas. Isso porque já temos dez anos de banda, é um longo tempo tocando. Mas a tendência da Tequila é subir. A gente nunca teve um disco distribuído que pudesse ser dito que tem no Chuí e no Oiapoque. Talvez com a próxima gravadora aconteça...

Vocês estão com gravadora nova?
Duda:
Estamos terminando o contrato com a nossa gravadora [Orbeat, de Porto Alegre] e aí vamos para uma nova.

Uma gravadora grande?
Duda:
Não sei se grande... Eu nem me preocupo com isso. O importante é ter o disco. Se o cara me ligar de Manaus dizendo que encontrou o disco, está beleza. A gente nunca teve uma mídia muito grande, mas o fato do disco estar na loja já faz com que mais pessoas conheçam a banda. Não precisa nem muito de mídia, acaba naturalmente acontecendo. A gente é uma banda do tipo “devagar e sempre”. Não queremos forçar a tanga. Eu quero continuar tocando, fazendo discos, me divirto pra caramba. Não quero forçar ninguém a gostar de Tequila Baby. Digamos que tem o cara X e ele não gosta da Tequila, mas eu espero que no futuro ele diga “Tequila Baby é uma banda que toca rock’n’roll e eu a respeito por isso”. Não é feio a gente dizer que não gosta de uma banda. O feio é a gente dizer que não gosta de uma banda porque os caras são de cabelo preto, é arranjar desculpas para não gostar. É simples, tu não gosta, não gosta. Eu não fico bravo porque uma pessoa diz que não gosta do nosso disco. Tem uma coisa, a Tequila nunca ganhou prêmio...

Está sabendo que vocês estão concorrendo ao Prêmio Claro de Música Independente com o disco A Ameaça Continua, na categoria álbum de punk rock?
Duda:
Estou. A gente não vai ganhar, mas legal que está concorrendo. Mas é ruim para o nosso caso, a gente prefere estar lá [aponta para o longe]. É aquela coisa, quem está no alto não consegue vender e quem está embaixo não consegue comprar. O ideal é estar no meio. Vamos pensar sério. O AC/DC faz um show para cem mil pessoas sem tocar no rádio, mas as pessoas sabem que existe. Eu prefiro que só tu e esse pessoal sejam rock’n’roll do que uma pessoa que está lá só porque está na moda e depois acaba largando fora, como já aconteceu no passado com a Tequila lá na época do Punk Rock Até Os Ossos. A gente colocava seis mil no show. Era estúpido! Não existiam tantos fãs de rock em uma cidade de dez mil pessoas. Os caras estavam lá porque era moda e isso não é legal. O legal é as pessoas irem no show e se divertir. Eu espero que nesse século novo as pessoas não tenham tanto preconceito de chegar e dizer que gostam de música eletrônica, de punk rock, de reggae. Se você tem essa visão na sua cabeça, seja bem-vindo ao show. A vida é curta, vamos nos divertir.

Você se imagina fazendo rock’n’roll até quando?
Duda:
Em 2005, vou para 34 anos. Se eu chegar aos 44 fazendo rock’n’roll, uau! Se eu conseguiu chegar aos 54, legal. Se eu conseguir chegaaarrrr aosssss 64... É difícil, né? Mas se eu conseguir, legal. Mas se eu conseguir isso tudo por mais dez anos, legal! Até onde eu conseguir tocar e cantar com essa voz rouca, beleza. Se chegar uma hora que não der mais, tudo bem, eu me retiro. O que importa é que já temos cinco discos. Sabe uma coisa que eu gostei muito? É um detalhe que as pessoas não se ligam muito. Fui para o interior de Santa Catarina, em uma cidade chamada Curitibanos e lá tinha uma loja de discos. Eu vi lá: “bandas nacionais”. Procurei Tequila e não tinha. Aí eu vi: “bandas internacionais”, “R”, depois “Ramones” e “Rolling Stones”... Você já viu aquelas lojas que tem o nome da banda e depois continua a ordem alfabética? E eu não achei nada da Tequila. Daí o cara falou “está nos nacionais. Procura no ‘T’”. E estava lá, uma plaquinha “Tequila Baby”, com os cinco discos da gente. Pensei “nossa, a gente já tem cinco discos. Eu quero fazer mais cinco. Eu quero encher uma prateleira”. É o lance do professor de História, dei aula muito tempo na minha vida. Vai chegar um dia que vou estar velho não vou mais conseguir tocar. Digamos que isso aconteça daqui a dez, vinte anos e então vai chegar um garoto que vai pegar um disco da Tequila Baby e gostar e montar um banda para tocar esse tipo de som... Porra, eu deixei história. Como professor de História eu nunca consegui deixar história. Com música, eu estou conseguindo. E isso é o máximo, cara! Quando eu montei a banda nunca pensei que ia tocar com Raimundos, Ramones, Bad Religion, Offspring, Millencolin, NOFX. Agora os caras conhecem a gente... Não quero mais que isso. Não quero ser da maior banda do Brasil. Acho estúpido esse tipo de coisa.

O que você pensa a respeito dessas bandas dos anos 80 que “voltaram” agora? Acha isso saudável?
Duda:
Se os caras quiserem fazer rock’n’roll, beleza. Muitas bandas dos anos 80 que vão tocar lá em Porto Alegre... Não vou citar nomes porque fica chato... Os caras são “rock’n’roll... Ramones”. Chegam aqui é “uhuuu... mão pra cima!”. Já toquei com muita banda do Paraná que aqui é “uhuuu... mão pra cima!” e aí chegam lá em Porto Alegre e é “hey ho, let’s go!”. Lá em Porto Alegre eles querem ser roqueiros e aqui eles querem ser pop. No Brasil existe um problema muito sério, não existe um registro histórico da nossa música. Começou agora, de 2000 para cá, mas ainda está muito cru.

[Neste momento chega Oneide Dee Diedrich, vocalista do Pelebrói Não Sei. Feitas as apresentações de praxe, ele é recebido com muito entusiasmo por Duda Calvin]

Duda: [muito surpreso] Meu Deus! Cara, eu vi um show de vocês com Los Vatos!!!

Oneide: Faz tempo!

Duda: [batucando na mesa e cantando] “Não dá nada”... Tu é o vocal, cara?

Oneide: Sou... Sou vocal...

Duda: A foder! Parabéns, cara!

Oneide: Que bom que você me recebeu assim. É que eu estava com um grilo violento por um mal-entendido absurdo.

Duda: O quê?

Oneide: A história de que alguém mandou e-mail para vocês dizendo que eu falei mal de vocês, alguma coisa assim. Não ficou sabendo?

Duda: Bah... [risos] Que absurdo! [falando para o repórter] Eu conheci o Pelebrói em um show em Porto Alegre que fui ver de bobeira. Fui ver o show de uns amigos meus dos Los Vatos e aí eu vi a banda deles tocando lá e tinha essa música que me marcou muito... [batucando na mesa] “Não dá nada!”... E eu curti muito essa música. Até hoje eu chego para os caras dos Los Vatos e... [novo batuque na mesa] “Não dá nada!”. Vocês ainda tocam essa música?

Oneide: Tocamos! [risos]

Duda: Banda boa, cara, banda boa. Eu acho que a gurizada do Pelebrói Não Sei, Relespública, do Faichecleres... Porto Alegre é longe para escutar o que está acontecendo no Paraná. Mas a garotada está conseguindo fazer uma coisa muito difícil, que é Curitiba ter uma cena musical. A Tequila Baby começou com uma gravadora chamada Antídoto, que era bem pequenininha. Aí a gente foi para a Orbeat, que tem a chancela da RBS, da Globo e tal. Só que não rola um centavo de grana. É bem complicado esse lance de gravadora. Para o punk rock isso é muito complicado porque a galera sempre fica policiando se a gravadora é legal. Mas via de regra – e isso eu aprendi nestes dez anos de banda – nenhuma gravadora é legal. RBS é Globo, né? A gente não ganhou clipe, não ganhou um centavo.

Oneide: É bom dizer isso para a galera que pensa “não, eles estão na RBS...”

Duda: A gente não tem nenhum clipe de A Ameaça Continua. A música que está rodando na rádio, que é “Ralph”, foi a gente que botou. A gravadora não está muito afim de investir. Mas eu não culpo ninguém por isso aí. Como é o nosso último disco pela Orbeat, vamos trabalhar direitinho até o meio ou final do ano. Depois a gente grava um disco legal por uma outra gravadora que não vai ser de Porto Alegre, não vai ser do Rio Grande do Sul. Eu cheguei à conclusão que não interessa a gravadora. O que interessa é você ter o seu disco e tentar fazer a distribuição. A nossa experiência com a Orbeat foi muito frustrante. A gente pensou que os caras iriam pelo menos querer vender discos. Mas sabe qual é a política dos caras? Eu descobri que qualquer gravadora vinculada a uma televisão regional tem essa política. Tu tem uma banda. Vamos chamá-la de “X” e ela vende 20 mil discos. Eu não vou querer seu disco em São Paulo porque lá pode vender 30 mil discos e uma outra gravadora paulista vai querer bancar o teu disco. É terrível! Por que nenhuma banda da Orbeat estourou no Paraná?

Não foi entre a Orbeat e o Cachorro Grande que rolou um problema?
Duda: Sim, foi a mesma gravadora. Infelizmente santo de casa não está fazendo milagre nem no Rio Grande do Sul, nem em Santa Catarina e nem no Paraná.
Oneide: Às vezes eu penso assim, em largar mão. A gente gravou o terceiro disco e não preciso mais. Sou psicólogo, sou psicanalista e não preciso mais ter banda. Só que antes de terminar o terceiro eu tinha feito quatro músicas novas... Vou ter que gravar o quarto! Eu me alimento muito disso. Nosso novo álbum vai se chamar Aos Farsantes Com Carinho. É um CD dedicado a nós...

Este terceiro disco está meio embrulhado para sair. Você havia dito que ele deveria sair em março.
Oneide
: Não está nada embrulhado, não. Está gravado. Nós ainda não mixamos. Quem está com pressa são os outros.

Mas saiu em um jornal que a gravadora Barulho Records está... Parece que eles haviam dito que a única banda que a Barulho vai lançar este ano é o Pelebrói.
Oneide:
A Barulho lança a gente a hora que a gente quiser. A gente tem um patrocinador que é um absurdo. É o maior exportador de madeira do Brasil. Ele tem 37 anos e ama punk rock.

Duda: A foder, cara!

Oneide: Para você ter uma idéia, a gente foi de Curitiba para a cidade dele. Ele foi nos buscar. Ele inventou o Pelebrói na cidade dele, em Palmas [PR]. No primeiro show lá deu 400 pessoas. No segundo, 600. No terceiro, ele foi nos buscar de avião em Curitiba, ficamos no melhor hotel da cidade, nos levou de avião de volta para Curitiba e teve mais de 1,2 mil pagantes.

Duda: Não sei se vocês concordam comigo. O interior do Paraná está ditando regra para a capital, assim como foi no interior Rio Grande do Sul.

Oneide: Cara, você me falou umas coisas... A gente conversou... Se conversou, foi um “oi” naquele show [do Marky Ramone & The Intruders, em Curitiba, em 2000]. Agora você me falou umas coisas de gravadora, RBS... Acho que tem tudo a ver. No Pelebrói eu componho as músicas e as letras. O Giovani, dos Faichecleres, diz: “pô, Oneide, eu não entendo os teus tempos”. Isso é Pelebrói! Quando você acha que vai entrar o vocal, não entra. E quando não é para entrar, ele entra antes da hora. Fico contente de ouvir algumas coisas que você está falando, pois é uma questão de identificação. Nós do punk rock, do rockanalha, do punkanalha... A gente pensa que é um ET no mundo do rock. E não é.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Bukowski: transgressão como regra de vida


“Deixa eu falar sobre ele. Outro dia, com uma ressaca danada, saí me arrastando do meio dos lençóis pra tentar ir ao supermercado comprar umas coisas, botar um pouco de comida no estômago e trabalhar no emprego que odeio. Muito bem, lá estava eu no tal supermercado quando entra esse merdinha de gente (devia ter a minha idade, só que talvez mais tranqüilo, burro e idiota), um esquilo cheio de nove horas e salamaleques e sem a menor consideração por coisa alguma, a não ser pela sua maneira de sentir, pensar ou se exprimir... um verdadeiro esquilo com cara de hiena, uma preguiça, uma lesma. Não pára de olhar pra mim...”

Este é o primeiro parágrafo do conto “Os grandes poetas morrem em penicos fumegantes de merda”, do escritor Henry Charles Bukowski. Figura inquieta, beberrão, viciado em corridas de cavalo, escritor marginal e, como ele mesmo se descreveu em vários contos, um velho safado. Bukowski gostava de ser o protagonista de seus contos, que tinham muito de autobiográfico. Suas histórias eram nascidas de um mundo infernal: empregos, bares, becos, universidades e até festas de casamento. O seu mundo era o universo dos derrotados, da escória e dos esquecidos pela sociedade.

Seus poemas, contos e romances são recheados de experiências inconformistas, sempre levadas às últimas consequências. Um de seus contos mais famosos, “A mulher mais linda da cidade”, conta o caso de Buk e Cass, uma jovem muito atraente que gostava de mutilar o corpo por achar que os homens só se relacionavam com ela por causa de sua beleza. Depois de passarem algumas noites juntos, Bukowski dá uma sumida da cidade e volta após seis meses, quando a reencontra. Viram-se outras vezes, mas certo dia Cass não apareceu no bar onde costumavam beber todas as noites. Quando Buk já estava muito bêbado, um garçom conta a ele que Cass havia se suicidado.

“Lá fora, na rua, alguém buzinou dentro de um carro. Uma buzina fortíssima, inistente. Bati a garrafa com força e gritei:

- MERDA! PÁRA COM ISSO, SEU FILHO DA PUTA!

A noite foi ficando cada vez mais escura e eu não podia fazer mais nada.”


Assim termina “A mulher mais linda da cidade”. Sem frescuras, sem sentimentalismos. Apenas o vazio.

E talvez o vazio existencial da vida de Bukowski (detestava seus empregos, odiava quase todo mundo, tinha poucos amigos, sofria graves problemas de saúde em decorrência da bebida, etc, etc, etc...) seja a sua maior fonte de inspiração. Outra coisa: Bukowski detestava os intelectuais. Certa vez, em entrevista a um jornal francês, disse que tentava “usar as menores palavras, as mais simples. Gosto do texto bruto. Desse jeito, não minto para mim mesmo, e as pessoas sabem o que digo. A literatura clássica desvia, arruma, traz a confusão”. Mais adiante, na mesma entrevista, detonou: “as leituras que fiz de meus poemas foram só por dinheiro, para poder viver. Detestava tudo, o público, ler... essa vaidade, essa comédia... eu me embriagava, insultava o público, pegava meu dinheiro e caía fora. Então era isso: eu nunca devia ter sido convidado”. Aí é que está a graça, o mistério de Bukowski: ele desmistifica qualquer áurea de erudição, que geralmente está associada e acompanhada dos escritoes.

Bukowski começou a escrever na década de 1950, publicando em pequenos folhetins. Ganhou certa notoriedade durante a década de 1960, a época da contracultura, mas nunca se sentiu à vontade quando comparado a escritores beats como Jack Kerouac, Allen Ginsberg ou Willian Burroughs. Tampouco gostava dos hippies. Já nas décadas seguintes ganhou o status de um grande escritor, embora muitos críticos torcessem e ainda torçam o nariz para ele, chamando-o de vulgar ou acusando-o de não saber escrever. Nada mal para quem não sabia o que fazer da vida e que, segundo ele próprio, foi salvo quando leu “Pergunte ao Pó”, de John Fante. Depois de ler este romance, Bukowski não tinha dúvidas: seria escritor a qualquer custo.

O velho safado – que nasceu na Alemanha e aos três anos veio com a família para os Estados Unidos, onde morreu em 1994 – deixou uma obra extensa, com mais de 40 livros de prosa e poesia.

Homem bruto, moldado pelas pancadas da vida, Bukowski não era dado a sentimentalismos baratos. Dos seus contos, um dos poucos em que ele menciona ter chorado foi em “Dei um tiro num cara lá em Reno”, que terminava assim:

“(...) ao abrir a porta, o telefone começou a tocar. Abri uma cerveja, sentei na cadeira de balanço e deixei tocar. Pra mim, era mais que o suficiente – de tarde, de noite e de madrugada.

Bukowski usa camisinha parda. Bukowski tem medo de avião. Bukowski não acredita em Papai Noel. Bukowski faz figuras disformes com as borrachas da máquina de escrever. Quando começa a chover, Bukowski chora. Quando Bukowski chora, é aquela chuva de lágrimas. Ah, reduto dos mananciais, ah, escrotos, ah, os escrotos que jorram, ah, a grande hediondez humana por toda a parte, como aquele cagalhão fresco de cachorro que o sapato não viu de manhã outra vez; ah, a polícia onipotente, ah, as armas poderosíssimas, ah, os ditadores tirânicos, ah, os grandes burros de merda por toda a parte, ah, os polvos solitários, ah, o tique-taque do relógio exaurindo o hasto vital de cada um de nós, sensatos e desequilibrados, santos e constipados, ah, os pés-rapados caídos pelos becos da miséria de um mundo dourado, ah, as crianças que ficarão medonhas, ah, os medonhos que ficarão ainda piores, ah, a tristeza e os sabres e o fechamento das paredes – sem Papai Noel, sem Xota, sem Varinha de Condão, sem Gata Borralheira, sem os Grandes Espíritos Eternos; que loucura – só merda e cães e crianças que apanham, só merda e a limpeza da merda; só médicos e pacientes, nuvens sem chuva, dias sem dias, ah, deus todo-poderoso que jogou tudo isso em cima de nós.

Quando chegarmos no seu magnificente palácio hebraico, na presença dos anjos acostumados a bater ponto, quero escutar tua voz dizendo apenas uma vez

MISERICÓRDIA
MISERICÓRDIA
MISERICÓRDIA

POR TI MESMO e por todos nós e pelo que fizemos por TI – saí da Irola até chegar na Normandie, foi o que fiz, e depois entrei, me sentei e deixei que o telefone tocasse.”

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Disparos do Front da Cultura Pop


Tony Parsons (o sujeito aí da foto) é um cara invejável. Nascido em Londres em 1953, abandonou a escola aos 16 anos para trabalhar numa destilaria de gim e hoje é um renomado autor de romances, cujos direitos para o cinema despertam o interesse de gente como Julia Roberts. Mas o que causa admiração - ou inveja, mesmo - não é o fato de que seus livros façam brilhar os olhos das estrelas de Hollywood, e sim, o seu currículo como jornalista que estreou na profissão aos 23 anos saindo do nada e caindo direto na redação da New Musical Express (NME). Isso foi em 1976 e hoje, quase 30 anos depois, Tony Parsons pode se orgulhar de ser um dos comentaristas mais polêmicos da Inglaterra, tendo espalhado seus ácidos comentários e reportagens sobre os mais variados temas em publicações como Arena, Elle, Daily Telegraph e The Guardian.

Um bom apanhado de sua produção na área do jornalismo está no livro "Disparos do Front da Cultura Pop", que a Editora Barracuda lançou no mercado brasileiro em 2005com tradução de Alyne Azuma. A coletânea de 55 textos, que cobre seus primeiros 18 anos de carreira, foi publicada originalmente em 1994. Ela está dividida entre os temas "Música", "Amor e Sexo", "Polêmica", "Viagens" e "Cultura". Ao todo, são mais de 350 páginas que, de tão ácidas, chegam a corroer os olhos do leitor.

Escola punk

Esse cinismo e o gosto pela provocação podem até ter vindo do berço, mas com certeza foram aprimorados nos tempos em que ele trabalhou para a NME cobrindo o surgimento do movimento punk londrino. Tony Parsons apanhou junto com os Sex Pistols após a banda dar o seu polêmico passeio de barco pelo Rio Tâmisa no Jubileu da rainha Elizabeth em junho de 1977; teve a honra de ser convidado por Joe Strummer para assumir as baquetas do The Clash; e desmascarou Billy Idol e o Generation X (um bando de "desmiolados se comparados ao Sex Pistols"). Tudo isso e muito mais nos seus tempos de NME, uma revista que "tomava conta da sua vida porque literalmente não se precisava de mais nada" e onde se conseguia "bebidas pesadas, mulheres delicadas, sexo esquisito, bebidas exóticas, um soco na boca, tudo - sem nem ao menos sair da redação".

Mas, por mais absurdo que pareça, depois de três anos Tony Parsons simplesmente cansou de tudo isso e no final da década de 70 foi atrás de novas histórias. É claro que ainda dedicou muitas linhas à música. Perguntou para George Michael se era verdade que ele era um cretino arrogante; descobriu que, assim como David Bowie, a sua narina direita também ficou praticamente inútil após aspirar quilômetros de cocaína; e ainda jogou muitas fichas e perdeu a aposta de que Brett Anderson (do Suede) seria o maior nome do rock dos anos 90, deixando para trás Kurt Cobain, a quem se refere apenas como "um rico fazendo tudo errado" em texto sobre o suicídio do líder do Nirvana. Perto das suas impressões sobre bateristas ("tradicionalmente os idiotas de qualquer grupo") e Kylie Minogue ("um copo de leite semi-desnatado"), até que a definição de Tony Parsons sobre Kurt Cobain parece um elogio.

Só que não é só no reino dos cabeludos e drogados do rock que Tony Parsons mostra ser alguém de profundo talento para transformar seus pensamentos em textos sempre prontos para aumentar um pouco mais a venda de jornais e revistas. "Ninguém ama a classe média", decreta o jornalista, para logo depois chutar a bunda dos mendigos ao revelar que não acredita "que as pessoas pedindo esmola sejam as mais azaradas do mundo. Eles são simplesmente pessoas com menos orgulho, dignidade, auto-estima - todos os valores intangíveis que sustentam o espírito humano". Não espere comiseração desse jornalista que ainda é capaz de escrever com o mesmo entusiasmo sobre a decadência da União Soviética, o retorno das torcidas inglesas aos campos de futebol e o quanto é desagradável ter uma mulher alcoolizada ao seu lado: "ficar bêbado é como ter um bigode. Fica bem num homem e horrível numa mulher".

Homens dos jornais

O autor recorda no livro que "antes de entrar para o NME eu achava que o mercado fonográfico seria um ciclo eterno de descobrir bandas novas e geniais, compartilhar os ritos de gratificação promíscua com rock star e viajar para os EUA. Quando entrei no NME, descobri que era exatamente assim que as coisas funcionavam". É, Tony Parsons. Você é um cara de sorte, do mesmo tipo de Cameron Crowe que aos 15 anos recebeu uma máquina fotográfica, uma caneta e uma caderneta junto com a missão de cobrir uma turnê do Led Zeppelin para a revista Rolling Stone. Poderia ter escolhido ser o baterista - o idiota de qualquer grupo, lembra? - do The Clash, mas preferiu viver "a fantasia de homem dos jornais" ao lado de "repórteres bêbados" como na Chicago de 1928. E essa fantasia está aí para ser partilhada, disparada direto do front da cultura pop.