terça-feira, 24 de setembro de 2013

Lourenço Mutarelli: o homem do cheiro do ralo


Lourenço Mutarelli encerrou a Semana Literária do Sesc







Marechal Cândido Rondon teve a felicidade de receber na última sexta-feira (20) o famoso escritor o quadrinhista Lourenço Mutarelli, que com sua palestra na Unioeste encerrou a programação da 32ª Semana Literária do Sesc no município. O título da palestra foi “Pela porta dos quadrinhos”, cuja proposta era discutir como esse tipo de material pode ajudar na formação de novos leitores.

Evidente que a discussão abraçou muitos outros temas. Mutarelli falou sobre o início de sua carreira como quadrinhista ainda nos anos 80 e como a arte do desenho o salvou de ser uma pessoa invisível. Abordou seu trabalho como romancista e as adaptações de seus livros para o cinema, em especial “O Cheiro do Ralo”. O filme ampliou ainda mais o sucesso alcançado pelo primeiro romance de Lourenço Mutarelli. Dirigido por Heitor Dhalia e estrelado pelo ator Selton Mello, ele foi lançado em 2007 e trazia o próprio escritor no papel de um segurança.

Entre curiosidades, frases de efeito e tiradas engraçadas, no papo de quase uma hora o escritor fez questão de defender que a prática da leitura deve ser sempre prazerosa e nunca obrigatória. “O convite é mais atraente que a imposição”, recomenda.

Os principais trechos da palestra podem ser lidos logo a seguir:


*** QUEM É O AUTOR?
Lourenço Mutarelli nasceu em 1964, em São Paulo. Escritor, artista gráfico, roteirista e ator, publicou diversos álbuns de histórias em quadrinhos. O cheiro do ralo, seu primeiro romance, saiu em 2002, seguido por O natimorto e Jesus Kid. Também escreveu peças de teatro e atuou em curtas-metragens e no filme O cheiro do ralo, de Heitor Dhalia.

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Quase invisível

A infância foi o pior momento da minha vida. Eu era quase invisível. Uma vez peguei um livro que tinha uns desenhos de um cara da idade média que pegava o rosto de uma pessoa que ele via alguma semelhança com um animal. Então ele ia desenhando essa pessoa até ela virar um animal. Eu copiei isso, o que impressionou muito o meu pai. Eu comecei a desenhar porque fui visto desenhando. Eu me tornei visível desenhando. Eu não gosto da palavra arte, mas não sei outra pra usar... Então a arte é algo muito terapêutico, que ajuda muitas pessoas. Acho que por isso comecei e continuei nesse caminho. Hoje estou curado, mas mesmo assim ainda desenho.

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A carreira nos quadrinhos

Comecei como desenhista e sempre que desenhava acaba escrevendo alguma coisa no mesmo papel ou sempre que escrevia desenhava alguma coisa. Quando fazia faculdade de Belas Artes fui trabalhar no Mauricío de Souza na parte de animação. Lá tinha uma gibiteca para os funcionários e foi onde conheci os quadrinhos mais contemporâneos e decidi que era isso que eu queria fazer.

Sempre é muito difícil o começo. Como havia muitas revistas, mas elas duravam pouco tempo, comecei a me dedicar ao formato de álbum, que hoje chamam de graphic novel. Meu primeiro álbum é “Transubstanciação”. Acabei ganhando um prêmio muito importante com ele e isso me ajudou a seguir em frente. Depois que eu tinha uns nove álbuns de histórias em quadrinhos, eu li o livro do Ferréz, “Capão Pecado”, e fiquei muito fascinado. Sempre li muito e tinha muito mais influência da literatura do que dos quadrinhos mesmo. Mas fiquei muito impressionado com esse poder que o escritor, ou mesmo o quadrinhista... A gente tenta ser ilusionista, tenta criar uma história que é quase uma magia para que o público acredite e entre nessa história.


Meu quadrinho é um trabalho muito pesado. Meu primeiro álbum eu tentava publicar e não conseguia e acabei desistindo. Saí da Maurício de Souza. Eu não tinha curso de datilografia e na minha geração, quem não tivesse esse curso não conseguia emprego. Eu só tinha subemprego. Uma vez estava numa farmácia onde comecei como gerente, de gerente passei pro caixa, do caixa eu fui promovido pro balcão. Depois cheguei no lugar de garoto que fazia os pacotes e por fim eu ficava numa sala só pondo em ordem numérica umas etiquetas que era um serviço só pro cara não me mandar embora, não tinha utilidade nenhuma.

Nessa época eu não estava muito bem da cabeça. Tive um sério problema psiquiátrico e fiquei um tempo fora do ar. Conforme eu melhorava, comecei a trabalhar nesse primeiro álbum que é o “Transubstanciação”. Depois disso fiz outro álbum que eu proíbo. Tem em PDF na internet, mas é um álbum muito pesado que se chama “Desgraçados”. Era um momento que eu não tava muito legal. Depois eu fiz um pior ainda que se chama “Confluência da Forquilha”, mas ele já tinha um pouco mais de humor. O meu álbum preferido é “A Caixa de Areia”, uma falsa autobiografia. Ele está esgotado mas logo devemos reeditar.

Foi entre 2010 e 2011 que voltei a fazer quadrinhos. Eu publico pela Companhia das Letras e a editora me fez uma proposta para voltar. Eu venho fazendo quadrinhos há muito tempo, mas é muito experimental. São obras que pretendo publicar postumamente porque, se publicar antes, me matam...

Não queria voltar, mas fiz um livro que a princípio foi bem difícil, mas gosto do resultado final. O álbum se chama “Quando meu pai se encontrou com um E.T. fazia um dia quente”. Ali era meio que uma revolta... Eu não queria voltar a fazer quadrinhos, mas voltei. Então pensei em fazer um livro que ninguém iria comprar. Dei esse título e quando você abre o livro, na primeira página é um tiozinho falando pra um E.T.: “Calorão, hein!”. Pensei que qualquer pessoa que fosse abrir o livro, leria isso e não compraria. No fim a história ficou bacana, gosto dela e não deu certo a ideia de não vender.

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O mercado de quadrinhos

Os anos 80 são um marco importante para os quadrinhos. No Brasil tinha revistas em banca muito baratas e incríveis. O quadrinho era um produto de massa. A Chiclete com Banana, que era uma revista nacional, vendia 120 mil exemplares por mês. Só que esse fenômeno acabou e ninguém sabe o porquê, se foi o videogame, a internet... Hoje em dia, eu acho que para o Angeli vender 120 mil exemplares levaria uns 10 anos.

A única coisa que ainda vende bem é Maurício de Souza porque muita criança se alfabetiza lendo isso. Mas, com o quadrinho não tendo mais espaço nas bancas, ele vai pra livraria. Mas não é porque ele é mais respeitado, é porque as tiragens são muito menores. Hoje em dia a tiragem de um autor que vende bem são 5 mil exemplares, que vão levar de um a dois anos pra vender. Eu tenho visto coisas interessantes, talvez não tão loucas quanto nos anos 80. Mas acho que isso era o momento em que acabou uma repressão muito forte e você podia fazer o que quisesse. Outra coisa é que a maioria das pessoas que surgiram naquele momento já está ficando velhinha e perdendo um pouco do fôlego.

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A vida como escritor

Fiquei com muita vontade de escrever uma história em que evocaria a imagem através da palavra, como os livros fazem, aí escrevi meu primeiro romance, “O Cheiro do Ralo” (2002). Era Carnaval e minha mulher tinha viajado com meu filho. Eu tinha um monte de trabalho de desenho pra fazer, mas em cinco dias eu escrevi esse livro. Isso mudou totalmente minha trajetória. Em menos de um mês depois de ser lançado eu vendi os direitos para o cinema. Alguns grupos de teatro me procuraram para comprar os direitos para esse mesmo livro, mas como eu já tinha vendido eles me convidaram para escrever minha primeira peça também. A partir daí eu fui me distanciando dos quadrinhos e me aproximei cada vez mais da literatura, principalmente porque apareceu muito trabalho ligado a isso. Ainda hoje eu recebo encomendas de roteiros para cinema. Mas eu prefiro fazer como um romance e alguém adapta porque não gosto de trabalhar o roteiro, que é uma peça muito técnica. Digo que é quase a autópsia de um texto. Não no sentido de matá-lo, mas no sentido de uma análise.

“O Cheiro do Ralo” me facilitou muitas coisas. Um pouco antes dele eu fiz algumas coisas como ator, mas não faço mais. Uma vez, um menino da USP ligou na minha casa me convidando para participar de um curta-metragem. Eu achei que ele queria ajuda no roteiro, mas ele queria que eu fosse o protagonista. Ele falou: "eu quero que você seja o protagonista. Não tem cachê!". Eu respondi: "você liga pra minha casa e me faz um convite desses... Eu não tenho como recusar!".  A única coisa que pedi é que ao invés de me chamar de protagonista, que ele me chamasse de galã, que achei mais sugestivo. Foi uma experiência muito interessante porque eu estava escrevendo minha primeira peça de teatro e quis ver como era o outro lado. Fiz muita coisa como ator por algum tempo. Uma coisa que eu brinco é que sou um não-ator porque não tenho DRT. Eu também sou um não-desenhista porque não tenho carteirinha de desenhista, sou não escritor, sou  não-tudo.

Quando me procuraram para comprar os direitos de “O Cheiro do Ralo”, me perguntaram se eu tinha interesse em fazer o roteiro. Disse que não queria fazer nada. Eu nunca tinha ganhado dinheiro fácil, então pensei “agora vou ganhar dinheiro fácil”. Mas não foi fácil. Levei quatro anos pra receber, depois de muita briga também. O Heitor Dhalia (diretor) me convidou para fazer um papel e aceitei desde que fosse um papel pequeno. Ele pediu pra eu fazer o segurança devido ao meu porte físico e foi delicioso...



O filme tem muita diferença do livro. Mas são diferenças que desde o começo o Heitor tinha em mente, são diferenças estéticas. Numa das primeiras entrevistas que dei,  falei que talvez o filme seja melhor que o livro porque essas diferenças abriram muito a história. Se ela fosse muito fiel ao livro ela seria como "O  natimorto”, que é meu segundo livro filmado. Aí foi muito mais complexo porque eu sou o protagonista desse filme. Eles cogitaram usar um galã, mas já tinham sondado meu nome e eu disse que iria fazer porque precisava ser alguém feio. Isso era fundamental para a história.

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Bloqueio criativo


Participei em 2007 de um projeto que se chama “Amores expressos”, que mandou 16 autores brasileiros para 16 cidades do mundo. A gente tinha que passar um mês nessa cidade e na volta escrever uma história de amor ambientada nesse lugar. Me mandaram pra Nova York, que era um lugar que eu não tinha a menor vontade de conhecer. Fiquei um mês lá e tive meu primeiro bloqueio criativo.

Quando voltei, todos estavam entregando livros sobre escritores brasileiros que foram passar um mês numa cidade, então me falaram que meu personagem não podia ser um escritor. Isso não era problema porque eu não pretendia que ele fosse escritor. Mas, falaram também que meu personagem não podia ser brasileiro. Aí fiquei muito sem chão porque não sei o que é não ser brasileiro.

A gente tinha que entregar uma sinopse com cinco páginas com começo, meio e fim da história e descrição dos personagens. Entreguei e pra mim já estava pronto. Mas tinha um número de caracteres a minha editora pegava muito pesado nesse projeto. O nome de todos os meus personagens eu bolei na cozinha da minha casa. Eu via aquela buchinha de lavar louça então tinha um que era o Scotch Bright, tinha um monte de personagens só com nomes de coisas de cozinha. O principal era o Chester... Eu escrevi umas frases que eram assim: “Ela deitou no peito do Chester”... “Ela beijou o peito do Chester”...

Minha editora não aceitou nada disso. Era um livro ruim e falei pra eles que achava importante livros ruins. Eu acompanho algumas bandas e você vê que o primeiro CD é maravilhoso, o segundo é mais ou menos, aí vem um que é um lixo e de repente vem um que é incrível. Essa coisa ruim é parte de uma trajetória. Mas eles não aceitaram meu argumento. Aí eu mexi, mas não gostei. O livro era pra sair este ano, mas vai sair ano que vem. Este é o livro que estou escrevendo.

Vou fazê-lo com cinco vezes mais caracteres do que me pediram porque meu personagem é alcoólatra e quando bebe ele repete as histórias. E é isso, vou entregar e se eles não quiserem lanço por outra editora. Eu gosto muito, rio em voz alta escrevendo esse livro. Minha mulher falou que só eu vou achar ele engraçado. Então, não gastem dinheiro com isso, tentem baixar em PDF.


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Escrever por encomenda

Meus primeiros livros de encomenda foram interessantes. “Jesus Kid” é interessante porque é para ser um filme. Quando comecei a escrevê-lo, quase todo o dia o Heitor, que é o diretor de “O Cheiro do Ralo” e que encomendou esse livro, me ligava pedindo uma coisa. Um dia ele ligou me dizendo que talvez o Selton Mello faria o filme. Na época ele era garoto-propaganda da Elma-Chips e o Heitor pediu se eu não conseguia colocar algumas batatinhas na história. Aí eu coloquei umas batatinhas. Depois ele ligou pedindo se eu poderia colocar umas moças bonitas: “que aí elas vêm fazer teste de elenco, sou o diretor, tem o teste de sofá...” Coloquei uma convenção de pin-ups. Era uma história que se passava num hotel, um personagem que pegava uma encomenda de um livro para escrever em três meses sem poder sair do hotel. Aí eles iam filmar o filme de graça em um hotel onde o filho do dono é halterofilista. “Tem como colocar halterofilista?”... O livro tem halterofilista. Eu me divertia com isso até que chegou um ponto em que Cidade de Deus estava estourando ele falou: “Puxa, a gente não falou de favela”. Falei: “quer que bote uma favela junto do hotel?”... E eu coloquei. Foi a minha primeira encomenda e foi tranquila. A segunda já não foi tão tranquila e o caso de Nova York foi a gota d’água pra mim. Como tenho um nome, as pessoas me encomendam uma coisa e finjo que não entendi e faço o que quero. Às vezes entrego coisas que não tem o menor sentido e como uso meu nome, mesmo que é ruim eles dizem que é bom.

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Obrigar a ler é crime!

Pra começar a atrair leitores, a gente precisa ter encontros, debates, conhecer as pessoas. Pra começar a gente deveria parar de obrigar as crianças a lerem livro. Acho isso um crime bárbaro. O convite é mais atraente que a imposição.

Dizem que o livro não pode ter palavrão, não pode ter sexo e não pode ter droga e rock and roll porque os jovens vão ler. Isso é ridículo! Eles tinham que ler Bukowski, Kafka, Ferrez, ler os contemporâneos, pessoas que falam com uma linguagem um pouco mais próxima da deles. Isso é uma forma que eu acho que poderia atrair o leitor e não obrigá-lo a ler. A pessoa escolhe um livro se quiser ler. Imagina ser obrigado a ouvir música, obrigado a ver filme, isso é criminoso. 


quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Apontamentos sobre literatura e a força do escritor

Escritor Carlos Eduardo de Magalhães na Unioeste/MCRondon



Marechal Cândido Rondon é uma das 21 cidades paranaenses onde está sendo realizada de 16 a 21 de setembro a 32ª Semana Literária do Sesc. Palestras com escritores, oficinas, mostras e feira de livros são parte da programação.

Ontem (18), no Tribunal do Júri da Unioeste, aconteceu a palestra “A força do escritor”, com os autores Veronica Stigger e Carlos Eduardo de Magalhães. A proposta era debater os seguintes tópicos:

“Que tipo de transformação social a literatura é capaz de empreender num país como o Brasil? Vamos discutir de que maneira se dá a interferência da ficção no dia a dia das pessoas, no cotidiano social. É possível falar em potência social das ficções?”.

Num espaço com capacidade para centenas de pessoas, um público de poucas dezenas de rondonenses compareceu. Uma cena digna do tema geral da Semana Literária deste ano: “Cadê o Leitor?”.

Deixando a ironia de lado e voltando para o assunto da palestra de ontem, reproduzo abaixo as falas do escritor Carlos Eduardo de Magalhães, que se dispôs a discutir mais teoricamente o tema, a partir de um texto escrito por ele com o título “Apontamentos sobre literatura”, publicado em 2006.

Abaixo, seguem trechos da introdução de sua fala, depois a leitura do texto citado, entremeado pelos comentário do autor e, por fim, as respostas para alguns dos questionamentos do público. Há afirmações polêmicas a respeito da relação entre escritor e leitor, arte e entretenimento e critérios que definem um bom livro e sua consequente repercussão na sociedade.

(*) O escritor Carlos Eduardo de Magalhães nasceu em São Paulo, em 1967. Tem nove livros publicados, dentre os quais Mera fotografia (Rocco, 1998), Os jacarés (CosacNaify, 2001),  Dora (Ateliê, 2005) e Trova (Grua, 2013). Pitanga (Grua, 2008) foi lançado no Uruguai em 2013.  O autor esteve como escritor convidado em residências nos EUA e na Índia.  É formado em administração de empresas pela FGV-SP e dirige a editora Grua Livros.

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INTRODUÇÃO DA PALESTRA

“Escritor não tem função social. O compromisso dele é com a literatura, com a obra dele, com as suas verdades, com seus ressentimentos, com a sua história. A gente não sabe de nenhum movimento social que foi consequência de uma obra literária. Temos várias obras literárias que podiam instigar isso. No caso brasileiro, Vidas secas; Morte e vida severina, que são obras que instigam, mas fazem uma coisa a longo prazo. Essas obras vão ser estudadas, aí entram na tradição e muito tempo depois passam a ser incorporadas e fazem uma modificação aos poucos.”


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LEITURA DO TEXTO Apontamentos sobre literatura COM OS COMENTÁRIOS (em itálico)


A prosa literária se utiliza de duas ferramentas para existir, o enredo e a palavra. Anterior às duas vem a ideia, que as justifica e legitima. Sobre a ideia: ela é o mais e o menos importante. É dela que o livro nasce, mas ela deve se perder na linguagem e história. Deve ser como o princípio ativo dos remédios homeopáticos. Diluídos ao extremo até que reste um nada, ou, segundo os mais exagerados, apenas a memória daquele princípio ativo. Bom mesmo é que o escritor, quando acabe o trabalho, nem se lembre mais dela. E ela, dessa maneira escondida, diluída, agirá sobre o leitor. Uma ideia escancarada não é literatura, é panfleto, por melhor que ela seja.


“Isso aqui eu quis dizer que tem inúmeros livros que tentaram fazer esses movimentos sociais, mas são livros que a gente nem sabe quais são. Eles acabam se transformando numa literatura muito fraca. Enfim, eles se perdem.”


A ideia é a alma do livro, é através do seu corpo físico, a palavra, que o leitor poderá enxergá-la. Ou não. Normalmente o que acontece é o leitor enxergar coisas que para ele façam sentido naquele momento. Por isso duas leituras nunca são iguais, ainda que feitas pela mesma pessoa. Existem também os fundamentos anteriores à primeira página escrita, e posteriores à ideia do livro. Antes de começá-lo, decisões são tomadas. A primeira, o tamanho. Dessa definição sai o ritmo, a profundidade, a velocidade de impacto. Um conto deve ter alta velocidade de impacto, dizer logo a que veio. Um romance deve ter velocidade controlada, uma sintonia fina no pé do acelerador.

O sem-número de contos que um romance contém são os centros de atenção nessa viagem, que tem seu ponto final em alguma estação desconhecida. No prólogo de Doze contos peregrinos, Gabriel García Márquez nos diz que se deve também saber algo sobre a estrutura que se vai usar e sobre algum personagem, que servirá de referência para outros personagens, ainda que esse primeiro um perca a força na construção da história.


“Isso é bem comum. Quando você faz uma narrativa longa, tem que saber de onde sai e onde vai dar. É como se você fosse atravessar um longo rio a nado. Você está vendo a outra margem, mas via de regra nunca vai chegar lá. Vai chegar um pouco pra direita, um pouco pra esquerda. E os personagens também acabam se construindo no meio, o que é bem comum de acontecer.”


Pois se trata mesmo de uma construção. A estrutura são alicerces nos quais o livro se apoiará. Escolhe-se o tipo, ou os tipos, de narrador, como o tempo se passa, a linguagem a ser usada, entre outros parafusos e sacos de cimento.


“O tipo de narrador é determinante para uma história. Eu gosto de narrador em terceira pessoa. Quase todos os meus trabalhos são narradores de terceira pessoa.”


E um projeto elétrico consistente, que dimensione a rede para toda a carga de energia que iluminará o escritor, seus dedos a percorrer um caminho que ele desconhece, e que não raro o surpreenderá. O enredo, a história, o fundo literário, é a gênese da prosa literária. A palavra escrita, a linguagem, a forma literária, é seu meio de existência. Depois da ideia perder-se, a história é de importância fundamental. Se a palavra elaborada é o combustível, a história é o motor que dá sentido à engenhoca toda. Escrever bem é pré-requisito. Uma bula de remédio, um artigo de jornal, uma peça publicitária engraçadinha devem ser bem escritas, e os três não são literatura. Bem sei que como contar uma história é tão importante quanto o que contar, ou a história em si.

E existem tantos exemplos disso, mas fiquemos só em William Faulkner e Guimarães Rosa. Mas é necessário que haja uma história, e uma história boa. Faulkner e Rosa, outra vez. A técnica pela técnica, tão apreciada por alguns, me parece estéril, como ser muito bom em fazer embaixadinha. Vira só curiosidade ou referência, ou diverte o público nos intervalos dos jogos, quando os jogadores de futebol estão nos vestiários recebendo instrução do técnico. Se a embaixadinha existe, deve estar no meio de uma jogada, dar sentido a ela, ser tão genial que dê sentido à própria partida. Por outro lado, a linguagem literária aperfeiçoa a língua, a palavra escrita.


“Tem vários exemplos de línguas que foram fundadas pela palavra escrita. O italiano, por exemplo... A Divina Comédia foi escrita com o dialeto da Toscana e aí firmou o italiano. Dom Quixote no dialeto de Castilha e firmou o espanhol. Camões, a mesma coisa. Grandes livros acabaram determinando essas línguas.”


Talvez, mais correto que aperfeiçoa, seja atualiza, traz a palavra escrita para o mundo contemporâneo a ela, sendo seu reflexo. Hoje, no mundo fragmentado e veloz, um mundo sem tempo e com infinitos estímulos, a palavra é nervosa, seca, precisa. Contos breves, minicontos, frases curtas apareceram refletindo e definindo esse mundo sem metáforas. Às vezes nos esquecemos que literatura é, sobretudo, entretenimento. Não nos permitimos dizê-lo. Mas é.


“Aqui eu quero fazer um parêntesis. Eu acho que arte é entretenimento, mas entretenimento não é arte. Arte é um entretenimento, ainda que seja da alma. Quando você passa uma tarde em um museu, você sai de uma maneira entretido com aquilo, é uma coisa sofisticada. Mas, um filme de ação, uma coisa assim não é pensada para ser arte. São duas coisas diferentes.”


E quanto mais elaborada a palavra, quanto mais escondida a ideia, quanto mais rica a história, mais sofisticado o entretenimento. Um bom livro nos incomoda e nos inquieta, é o veículo em que somos passageiros solitários em uma viagem, por vezes árida, com destino a nós mesmos. Um bom livro carrega-se a vida inteira.

Um bom livro define uma geração. Como reconhecer o grande livro? Você o reconhece, esteja certo. Uma dica? Ele é aquele te derruba. E, derrubado, você começa a sentir o chão que te sustenta. Por fim, não nos deixemos enganar, não nos esqueçamos, sob pena da construção toda desmoronar feito um arranha-céu construído com cimento ralo e areia da praia – saibamos todos que o principal objetivo da literatura não é nem a história, nem a palavra. Elas são meios, o fim é o homem. A literatura talvez seja a maneira mais formidável que o homem descobriu para investigar-se, iluminar, ainda que precariamente, as sombras do seu ser.


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DEBATE COM A PLATEIA


- Sobre a relação do escritor com o leitor e a crítica literária:

A minha relação com o leitor é nenhuma. O primeiro leitor que você tem que agradar é você mesmo. É muito claro que o tipo de trabalho que você escreve, repete muito o tipo de leitor que você é. Eu acho que a relação não é nenhuma porque se você vai escrever para o leitor, você não sabe o que ele quer. Segundo, o leitor pode escolher milhares de livros que já foram publicados dez anos para atrás, que são livros excelentes. Então como eu vou escrever uma coisa para esse leitor? Então a relação que eu tenho é nenhuma. Quando eu escrevo, primeiramente tenho que gostar do que eu escrevo. Você pode escrever uma coisa para o leitor e não existe nenhuma garantia que o leitor vai gostar daquilo. Uma figura importante é o editor, que vai fazer esse filtro. Vou dar um exemplo. No meu primeiro livro de contos, mandei para uma editora que não existe mais que é a Pauliceia. Eram 17 textos e o editor disse: “esses três são bons, esses 13 você reescreve e esse um você joga fora”.


- Sobre a aparente contradição entre as afirmações de que “um escritor não tem função social” e que “um livro pode definir uma geração”:

Eu não acredito em livro escrito como uma função social. Acho que o livro que define uma geração não foi escrito para definir uma geração. Ele define uma geração porque o escritor é sobre tudo uma antena. Grandes escritores conseguem captar uma realidade antes que essa realidade se estabeleça. Kafka em O Processo, A Metamorfose e mesmo nos contos está falando de um mundo que se estabeleceu 20 anos depois. Esses livros definiram uma geração, mas duvido que ele escreveu pensando nisso. Quando o escritor escreve não está pensando em mudar o mundo. O livro muda, principalmente, o indivíduo que, quando lê, sai uma pessoa melhor. O livro muda o indivíduo e esse indivíduo vai mudar o mundo.