sábado, 20 de fevereiro de 2010

Quando o jornalismo gonzo morreu


Uma bala disparada contra a própria cabeça. Deve ter feito barulho à beça. Foi assim que o estadunidense Hunter S. Thompson, o pai do jornalismo gonzo escolheu para dar fim à sua vida maluca há exatos cinco anos, no dia 20 de fevereiro de 2005, aos 67 anos de idade. O jornalista, carinhosamente conhecido como Mr. Gonzo e que ficou famoso com suas reportagens ácidas e caóticas regadas a álcool e doses cavalares de drogas, estava em sua casa em Woody Creek, no estado norte-americano do Colorado. Falava com a esposa ao telefone quando disparou o tiro. Nos últimos anos, Thompson - que era aficionado por armas - trabalhava como comentarista esportivo para a ESPN.

Nascido em 1937, Thompson estudou jornalismo na Universidade Columbia, em Nova York. Era fã do escritor Ernest Hemingway, que em 1961 também se matou com um tiro de fuzil. Garoto-problema, ele teve de se alistar na Força Aérea norte-americana para escapar de uma temporada na cadeia. Avesso às normas rígidas do Exército, onde já atuava como jornalista, no início da década de 60 ele tornou-se repórter free-lancer e passou uma temporada na América do Sul, período em que escreveu reportagens principalmente sobre a Colômbia, Peru e Brasil - fixou residência no Rio de Janeiro em 1963, ficando até poucos meses antes do golpe de 1964. Durante o tempo em que viveu na Cidade Maravilhosa, Hunter S. Thompson sentiu no ar o clima de opressão que o Exército já exercia sobre os brasileiros antes mesmo de tomarem o poder, conforme apontou em reportagem sobre um atentado que as Forças Armadas promoveram contra uma boate, matando e ferindo vários civis.

Até então, o jornalista cobria algumas pautas incomuns, porém nada extraordinárias. A fama começou a surgir de verdade em 1966, após a publicação de uma grande reportagem sobre os Hell’s Angels, gangue de motoqueiros que na época aterrorizava os Estados Unidos e era sinônimo de orgias, drogas e violência. Doido como ele só, Thompson fez amizade com os motoqueiros, com quem conviveu na estrada por cerca de um ano, até levar uma surra que lhe mandou direto para o hospital. A aventura transformou-se no seu primeiro livro: Hell’s Angels - Medo e Delírio Sobre Duas Rodas, que ganhou edição nacional em 2004 pela Editora Conrad, quase 40 anos após a sua publicação original.

Gonzo

Apesar de ter características do new journalism - como a inclusão do repórter enquanto personagem dos fatos sobre os quais escreve, com um texto bastante influenciado pela literatura -, o livro Hell’s Angels... praticamente segue os padrões de uma reportagem convencional, se comparado com o que Hunter escreveria a partir da segunda metade da década de 60. Foi nessa época que ele entrou de cabeça no universo encantado imaginado por Timothy Leary [o guru da ideologia lisérgica], abusando não apenas dos doces psicodélicos, mas também de qualquer elemento químico que “fritasse” cérebro e transformasse a realidade objetiva em viagens coloridas, degradantes e perigosas. Essas experiências depois eram deliciosamente repassadas ao papel, para o medo dos conservadores e para o delírio dos malucos da época.

O reconhecimento e a fama de porralouca incorrigível chegaram mesmo em 1972, com a publicação do livro Medo e Delírio em Las Vegas, que também foi lançado no Brasil em 2007. Acompanhado do advogado Oscar Acosta, Thompson transformou o que seria uma matéria comum de 250 palavras sobre uma tradicional corrida de motos de Las Vegas [a Mint 400] em um registro fantástico e jamais inigualável no qual descortinou a fragilidade do american way of life. Sucesso imediato, o livro é desde então um marco da contracultura da época.

Publicado inicialmente pela Rolling Stone – "a única revista dos Estados Unidos na qual eu poderia ter publicado o livro", declarou Thompson – Medo e Delírio em Las Vegas, inclusive, foi adaptado para o cinema em 1998, com Johnny Deep no papel principal e Benício del Toro como Acosta. Como Hunter S. Thompson certa vez disse sobre o seu livro mais famoso, é óbvio que Medo e Delírio... foi o resultado do uso compulsivo de todos os tipos de drogas imagináveis durante vários dias seguidos. "Só uma porra de um lunático escreveria um negócio como esse e alegaria ser tudo verdade", declarou o autor a respeito de sua obra-prima.

Já o auge da produção estritamente jornalística de Thompson - ou seja, aqueles textos publicados originalmente em revistas e jornais - está registrado no livro A Grande Caçada aos Tubarões, publicado nos Estados Unidos em 1979 e que no final de 2004 ganhou também uma inédita edição brasileira. A obra é uma coletânea de reportagens selecionadas pelo próprio autor. O início da decadência do presidente Richard Nixon, a inesperada chegada de Thompson a um vilarejo dominado por traficantes na Colômbia, relatos sobre iniciação do jornalista no LSD, uma entrevista quase fracassada com o boxeador Muhammad Ali, as viagens chapadas percorrendo os Estados Unidos em um conversível a 180 km/h, o pânico de cruzar fronteiras com o cérebro e a bagagem entupida de drogas são alguns dos assuntos presentes na obra.

Morte

Como acontece com os homens que vivem à frente do seu tempo, a morte de Hunter S. Thompson precipitou um grande interesse pelas obras e vida do autor. Uma espécie de revival de um momento maior que na verdade nem chegou a acontecer. São diversos livros, filmes, textos diversos retratando a vida e obra desse maluco incorrigível...

O pai do jornalismo gonzo não deixou descendentes na profissão. Muitos tentaram, mas ninguém chegou nem perto. Faltaram-lhes a mesma coragem, a disposição para o consumo de doses industriais de substâncias ilícitas, a capacidade de extrair do caos algo de consistência que não ficasse apenas em pura viagem ou conversa-mole de um junkie qualquer. Acima de tudo, faltou o estilo para fazer de si mesmo o que há de principal na notícia. Foi isso que Thompson fez em toda a sua vida. Transformou a si mesmo, o jornalista, no foco principal de suas matérias. Nos últimos anos, muitos afirmavam que ele havia se tornado escravo do seu passado. Para esses, deu a resposta.

A morte de Mr. Gonzo não poderia jamais ser comum. É claro que tinha que fazer barulho. É óbvio que tinha de ser chocante, definitiva e a seu modo. Personagem principal das pautas que cobriu, Hunter S. Thompson também foi protagonista da sua última história. Deu um nó no Cara lá de cima e decidiu qual a hora de colocar um ponto final em tudo. Gonzo até na hora de morrer...


NOTA SUICIDA

Em setembro de 2006, a revista norte-americana "Rolling Stone", que praticamente abriu as portas para Hunter S. Thompson nos anos 60, publicou um artigo do biógrafo oficial de Mr. Gonzo, Douglas Brinklçeu. Junto à matéria foi publicado aquele que teria sido o último texto deixado pelo jornalista, escrito quatro dias antes de seu suicídio. Com o título de "Football Season Is Over" ou "A Temporada de Futebol Acabou", Thompson justifica o fim de sua própria vida:

"Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de caminhar. Chega de diversão. Chega de nadar. Sessenta e sete. São 17 anos além dos 50. Dezessete a mais do que eu precisava ou desejava. Chato. Sou sempre desbocado. Sem diversão - para ninguém. Sessenta e sete. Você está se tornando mesquinho. Assuma sua idade avançada. Relaxe - isso não vai doer".


THOMPSON EM EDIÇÃO NACIONAL

Desde 2004, a Editora Conrad e a Companhia das Letras vêm publicando no Brasil alguns dos mais importantes títulos do jornalista Hunter S. Thompson. Abaixo, um tira-gosto do que você pode encontrar em uma livraria bem perto da sua casa.

*** HELL´S ANGELS: MEDO E DELÍRIO SOBRE DUAS RODAS - Um brutamontes andando numa moto chopper Harley-Davidson modelo 74, com cara de poucos amigos, cabelos compridos balançando ao sabor do vento, barba há meses por fazer. Como uniforme ele traja botas, uma calça Levi s engraxada e sebenta e uma jaqueta jeans sem mangas que traz estampada nas costas a imagem de uma caveira com duas asas. Acima do desenho a inscrição "Hell s Angels". Agora some este personagem a outros 100, 150 motoqueiros tão parecidos entre si trafegando por uma rodovia movimentada da Califórnia na década de 60, ziguezagueando entre os veículos e deixando atrás de si, além da poeira, um rastro de sangue e o odor da transpiração de litros e litros de cerveja. Com um ótimo faro para boas reportagens e uma predisposição involuntária para se meter em confusão, em 1965 Hunter S. Thompson pediu uma grana para o seu editor e depois de 12 meses voltou com uma incrível história sobre os Hell’s Angels. As festas, orgias, tretas com a polícia, as viagens de ácido e as incontáveis bebedeiras vividas com a gangue de motoqueiros mais malucos da história estão no livro "Hells Angels: Medo e Delírio Sobre Duas Rodas".

*** A GRANDE CAÇADA AOS TUBARÕES: HISTÓRIAS ESTRANHAS DE UM TEMPO ESTRANHO - Lançado originalmente em 1979, este livro é uma reunião de artigos escritos nas décadas de 60 e 70 para diversas publicações como Rolling Stone, Playboy, National Observer e New York Times. Divagações sobre a própria fama, comentários ácidos sobre a comunidade hippie, a violência dos militares no Brasil nos anos 60, corridas de motos e beatniks são alguns temas presentes na obra. Tudo, ou quase tudo, escrito ou rascunhado enquanto Hunter S. Thompson estava completamente doidão. "Olhando retrospectivamente para tudo isso, meu único sentimento pela pesca em alto-mar é uma absoluta e visceral aversão. Hemingway estava certo quando decidiu que uma submetralhadora .45 era a ferramenta adequada para pescar tubarões, mas estava errado quanto aos alvos. Por que atirar em peixes inocentes quando os culpados andam diretamente pelas docas, alugando barcos por 140 dólares ao dia para otários bêbados que se denominam pescadores esportivos?", pergunta Thompson depois de passar alguns dias num hiate rodeado por milionários naquilo que deveria ser uma matéria para a Playboy sobre pesca e acabou se tornando um guia de como passar pela alfândega dos aeroportos completamente chapado.

*** SCREWJACK - Hunter S. Thompson aprofundando-se mais na literatura, este pequeno livro apresenta três contos. Em "Mescalito" o autor conta sobre a sua primeira viagem com mescalina. Em "Morte de Um Poeta" narra uma visita bizarra a um casal de amigos. Já em "Screwjack" assume a personalidade de Raul Duke para narrar a sua estranha paixão por um... gato. Na introdução, Mr. Gonzo justifica a ordem de publicação dos contos: "creio que Screwjack deva ser o último & Mescalito o primeiro - de modo que a tensão dramática (& também a genuína esquisitice cronológica) possam crescer, como o Bolero de Ravel, até atingir um clímax mais rápido & ensandecido que arraste implacavelmente o leitor até o topo de um morro & de lá o atire de um penhasco". Publicado pela primeira vez em 1991.

*** RUM: DIÁRIO DE UM JORNALISTA BÊBADO - Primeiro romance de Hunter S. Thompson. Escrito ainda na década de 50, só acabou publicado em 1998. Com passagens estritamente biográficas, o livro conta a história de um jornalista de 30 anos vivendo entediado na América Latina. "Passamos as seis horas seguintes numa minúscula cela de concreto, na companhia de uns 20 porto-riquenhos. Não podíamos sentar, tinham mijado por todo o chão. Ficamos parados no meio da cela, distribuindo cigarros como se fôssemos representantes da Cruz Vermelha. Nossos companheiros tinham uma aparência ameaçadora. Alguns estavam bêbados, outros pareciam malucos. Enquanto ainda distribuíamos cigarros eu me sentia seguro, mas fiquei tentando imaginar o que aconteceria quando acabassem".

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