sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Bukowski: transgressão como regra de vida


“Deixa eu falar sobre ele. Outro dia, com uma ressaca danada, saí me arrastando do meio dos lençóis pra tentar ir ao supermercado comprar umas coisas, botar um pouco de comida no estômago e trabalhar no emprego que odeio. Muito bem, lá estava eu no tal supermercado quando entra esse merdinha de gente (devia ter a minha idade, só que talvez mais tranqüilo, burro e idiota), um esquilo cheio de nove horas e salamaleques e sem a menor consideração por coisa alguma, a não ser pela sua maneira de sentir, pensar ou se exprimir... um verdadeiro esquilo com cara de hiena, uma preguiça, uma lesma. Não pára de olhar pra mim...”

Este é o primeiro parágrafo do conto “Os grandes poetas morrem em penicos fumegantes de merda”, do escritor Henry Charles Bukowski. Figura inquieta, beberrão, viciado em corridas de cavalo, escritor marginal e, como ele mesmo se descreveu em vários contos, um velho safado. Bukowski gostava de ser o protagonista de seus contos, que tinham muito de autobiográfico. Suas histórias eram nascidas de um mundo infernal: empregos, bares, becos, universidades e até festas de casamento. O seu mundo era o universo dos derrotados, da escória e dos esquecidos pela sociedade.

Seus poemas, contos e romances são recheados de experiências inconformistas, sempre levadas às últimas consequências. Um de seus contos mais famosos, “A mulher mais linda da cidade”, conta o caso de Buk e Cass, uma jovem muito atraente que gostava de mutilar o corpo por achar que os homens só se relacionavam com ela por causa de sua beleza. Depois de passarem algumas noites juntos, Bukowski dá uma sumida da cidade e volta após seis meses, quando a reencontra. Viram-se outras vezes, mas certo dia Cass não apareceu no bar onde costumavam beber todas as noites. Quando Buk já estava muito bêbado, um garçom conta a ele que Cass havia se suicidado.

“Lá fora, na rua, alguém buzinou dentro de um carro. Uma buzina fortíssima, inistente. Bati a garrafa com força e gritei:

- MERDA! PÁRA COM ISSO, SEU FILHO DA PUTA!

A noite foi ficando cada vez mais escura e eu não podia fazer mais nada.”


Assim termina “A mulher mais linda da cidade”. Sem frescuras, sem sentimentalismos. Apenas o vazio.

E talvez o vazio existencial da vida de Bukowski (detestava seus empregos, odiava quase todo mundo, tinha poucos amigos, sofria graves problemas de saúde em decorrência da bebida, etc, etc, etc...) seja a sua maior fonte de inspiração. Outra coisa: Bukowski detestava os intelectuais. Certa vez, em entrevista a um jornal francês, disse que tentava “usar as menores palavras, as mais simples. Gosto do texto bruto. Desse jeito, não minto para mim mesmo, e as pessoas sabem o que digo. A literatura clássica desvia, arruma, traz a confusão”. Mais adiante, na mesma entrevista, detonou: “as leituras que fiz de meus poemas foram só por dinheiro, para poder viver. Detestava tudo, o público, ler... essa vaidade, essa comédia... eu me embriagava, insultava o público, pegava meu dinheiro e caía fora. Então era isso: eu nunca devia ter sido convidado”. Aí é que está a graça, o mistério de Bukowski: ele desmistifica qualquer áurea de erudição, que geralmente está associada e acompanhada dos escritoes.

Bukowski começou a escrever na década de 1950, publicando em pequenos folhetins. Ganhou certa notoriedade durante a década de 1960, a época da contracultura, mas nunca se sentiu à vontade quando comparado a escritores beats como Jack Kerouac, Allen Ginsberg ou Willian Burroughs. Tampouco gostava dos hippies. Já nas décadas seguintes ganhou o status de um grande escritor, embora muitos críticos torcessem e ainda torçam o nariz para ele, chamando-o de vulgar ou acusando-o de não saber escrever. Nada mal para quem não sabia o que fazer da vida e que, segundo ele próprio, foi salvo quando leu “Pergunte ao Pó”, de John Fante. Depois de ler este romance, Bukowski não tinha dúvidas: seria escritor a qualquer custo.

O velho safado – que nasceu na Alemanha e aos três anos veio com a família para os Estados Unidos, onde morreu em 1994 – deixou uma obra extensa, com mais de 40 livros de prosa e poesia.

Homem bruto, moldado pelas pancadas da vida, Bukowski não era dado a sentimentalismos baratos. Dos seus contos, um dos poucos em que ele menciona ter chorado foi em “Dei um tiro num cara lá em Reno”, que terminava assim:

“(...) ao abrir a porta, o telefone começou a tocar. Abri uma cerveja, sentei na cadeira de balanço e deixei tocar. Pra mim, era mais que o suficiente – de tarde, de noite e de madrugada.

Bukowski usa camisinha parda. Bukowski tem medo de avião. Bukowski não acredita em Papai Noel. Bukowski faz figuras disformes com as borrachas da máquina de escrever. Quando começa a chover, Bukowski chora. Quando Bukowski chora, é aquela chuva de lágrimas. Ah, reduto dos mananciais, ah, escrotos, ah, os escrotos que jorram, ah, a grande hediondez humana por toda a parte, como aquele cagalhão fresco de cachorro que o sapato não viu de manhã outra vez; ah, a polícia onipotente, ah, as armas poderosíssimas, ah, os ditadores tirânicos, ah, os grandes burros de merda por toda a parte, ah, os polvos solitários, ah, o tique-taque do relógio exaurindo o hasto vital de cada um de nós, sensatos e desequilibrados, santos e constipados, ah, os pés-rapados caídos pelos becos da miséria de um mundo dourado, ah, as crianças que ficarão medonhas, ah, os medonhos que ficarão ainda piores, ah, a tristeza e os sabres e o fechamento das paredes – sem Papai Noel, sem Xota, sem Varinha de Condão, sem Gata Borralheira, sem os Grandes Espíritos Eternos; que loucura – só merda e cães e crianças que apanham, só merda e a limpeza da merda; só médicos e pacientes, nuvens sem chuva, dias sem dias, ah, deus todo-poderoso que jogou tudo isso em cima de nós.

Quando chegarmos no seu magnificente palácio hebraico, na presença dos anjos acostumados a bater ponto, quero escutar tua voz dizendo apenas uma vez

MISERICÓRDIA
MISERICÓRDIA
MISERICÓRDIA

POR TI MESMO e por todos nós e pelo que fizemos por TI – saí da Irola até chegar na Normandie, foi o que fiz, e depois entrei, me sentei e deixei que o telefone tocasse.”

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