quarta-feira, 16 de outubro de 2013

“O Som da Revolução”: uma conversa sobre contracultura com Rodrigo Merheb



Rodrigo Merheb: "a resistência continua sempre"

O jornalista Rodrigo Merheb foi um dos convidados a palestrar durante o 1º Congresso Internacional Sobre Estudos do Rock, realizado no final de setembro na Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Unioeste, campus de Cascavel. Na oportunidade ele participou do debate que teve como tema “O rock e o jornalismo literário”.

Merheb é o autor do livro “O Som da Revolução – uma história cultural do rock: 1965-1969”. Lançado pela editora Civilização Brasileira no ano passado, o livro disseca a contracultura da segunda metade da década de 1960 nos Estados Unidos, sem deixar de fora suas conexões com a revolução cultural e comportamental que ao mesmo tempo se desenvolvia com força na Inglaterra.

Resultado de um trabalho de mais de seis anos, “O Som da Revolução” foi escrito enquanto ele morou nos Estados Unidos, onde trabalhou como vice-cônsul em Chicago. Para quem não conhecia ou tampouco sabia do trabalho de Merheb como colunista de cultura do jornal mineiro O Tempo, o que era meu caso, é muito estranho imaginar o que alguém ligado ao trabalho em um Consulado teria a dizer sobre a contracultura. Mas, ao ler as cerca de 500 páginas do livro fica evidente que Merheb tem muito que falar a respeito.

Partindo do recorte temporal entre a histórica apresentação de um recém-eletrificado Bob Dylan no tradicional festival folk de Newport, em 1965, e o trágico festival de Altamont promovido quatro anos depois pelos Rolling Stones, o jornalista conta e analisa no livro a ascensão, apogeu e diluição da cultura hippie.

Ao recorrer a uma extensa bibliografia atual e da época e fazendo valer o seu profundo conhecimento musical, Merheb criou uma narrativa racional sobre um movimento  marcado por grandes contradições, bem longe da imagem idealizada e sentimentalóide de paz e amor com que a história se encarregou de tratar o tema e seus principais personagens. Inclusive, explica o autor na introdução do livro, “o fato de não sentir nenhum tipo de nostalgia dos anos 1960 foi fundamental para entender as engrenagens históricas e culturais que sedimentaram essas mitologias”.

Abaixo, segue o bate-papo entre Rodrigo Merheb e eu durante a passagem do escritor por Cascavel.

Capa do livro de Rodrigo Merheb

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CRISTIANO VITECK: Quando vi seu livro e comecei a folhear, pensei o que um vice-cônsul do Brasil teria para escrever sobre contracultura. Parecem ser mundos tão distintos e você habita os dois. Como foi que surgiu a ideia de escrever o livro?
RODRIGO MERHEB: Rock é uma paixão de adolescência, que pré-data a minha carreira no Itamaraty. É uma música que foi fundamental na minha vida. Não apenas a música, mas tudo que a cerca. Aprendi muito e foi fundamental na minha formação e na maneira de ver o mundo. Evidentemente que em algum momento, se você não é músico, segue uma carreira. Eu sou jornalista formado e entrei no Itamaraty logo depois de me formar. Mas nunca deixei de lado a vontade de escrever. Continuava sendo colunista de jornal. Quando minha coluna no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, foi interrompida, eu achei que era o momento de fazer uma obra de mais fôlego. Eu tinha conceitualmente essa ideia de contar a história de um movimento que tinha um processo de ascensão e declínio. Apesar de ter enveredado por outro caminho, a paixão pela música nunca deixou de estar presente na minha vida.

Nessa coluna de jornal você escrevia sobre o que?
Era uma coluna de cultura. Tinha total liberdade de pauta para escrever sobre o que eu quisesse. Nunca fui pautado, censurado e fiquei sete anos fazendo, até que se esgota. Se você não quer ficar fazendo aquilo a vida inteira, chega um ponto que já falou tudo o que tinha que falar naquele formato. Com o livro eu não precisava ter limitação de tempo, não precisava ficar preocupado com deadline. Podia me dedicar a fazer pesquisa na hora que me fosse mais adequada, porque eu tinha uma vida muito ocupada. Trabalhava o dia inteiro em outro tipo de trabalho, então tinha que escrever em minhas horas de folga e nos fins de semana. Demorou muito, mas finalmente terminei.


Quanto tempo levou para escrever o livro?
Eu comecei em 2004 e não terminei até hoje... (risos). A cada vez que eu olho descubro alguma coisa que gostaria de mudar. Mas, no todo, contando com a pesquisa e o texto deu uns seis anos. Eu meio que elaborei  todo o formato do livro na minha cabeça e ia escrevendo na medida em que ia pesquisando. Aí voltava, acrescentava coisas, tirava, até chegar ao formato certo.  Mas eu tinha conceitualmente o que queria, pois já conhecia razoavelmente a história. Só tinha que colocá-la no papel e acrescentar outros detalhes, confrontar visões que eram divergentes. Tudo isso leva tempo.

Suas principais fontes, quais foram?
Muito material bibliográfico, livros e revistas da época e de hoje. O fato de eu estar nos Estados Unidos facilitou muito porque eu podia ir ao sebo e comprar 50 livros e gastar muito pouco. A internet só serviu para eu comprar livros pela Amazon, mas em termos de pesquisa, nada.


No Brasil temos uma imagem muito distante da geração de Woodstock, tanto no tempo como geograficamente. Como você morou nos Estados Unidos, gostaria de saber qual a visão dos norte-americanos sobre Woodstock hoje.
Depende muito com quem você vai buscar essa interlocução. Evidentemente, o segmento mais conservador nunca aceitou e não aceita. Até hoje acham que aquilo foi um desvio de rota na história, nos ideais americanos, daquela trindade máxima da família, religião e pátria. Mas, os segmentos mais progressistas veem Woodstock como uma etapa muito necessária para a maturação do americano como cidadão, para ele pensar por si próprio e coletivamente também, em termos de criar outro tipo de sociedade possível, de como deve se organizar uma coisa mais fundada na harmonia e menos no consumo... Apesar de que Woodstock não era um festival beneficente, foi montado para dar lucro. Mas o resultado de Woodstock faz parte desse processo, é fundamental na contracultura americana. Do mesmo jeito que os conservadores achavam que aquilo era um desvio de rota, o pessoal mais progressista achava que aquilo era a restituição dos verdadeiros ideais americanos de justiça, liberdade, que estavam sendo esquecidos pelas classes dominantes, pelos governos. Então, a relação do americano com Woodstock depende basicamente a quem você perguntar. Os Estados Unidos são um país partido, tanto que em termos eleitorais o país é dividido entre Estados azuis e vermelhos. Quer dizer, quem é azul nunca vota nos republicanos, e vermelho nunca vota nos democratas. E tem os Estados pêndulos, que são quem invariavelmente decidem as eleições. Então, é um país muito fragmentado. As duas costas, Lestes e Oeste, muito progressistas e o miolo extremamente conservador.

No livro você conseguiu falar de todas as cenas da contracultura norte-americana das costas Leste e Oeste e também passou pela cena de Detroit. Quando se aborda a contracultura dos anos 60 nos Estados Unidos, se aborda geralmente a Califórnia...
É porque a contracultura é basicamente um movimento migratório do centro cultural da costa Leste (Nova York) para a Califórnia. Os beats começaram a descer para São Francisco nos anos 50 e a indústria do disco teve também uma mudança súbita de Nova York para Los Angeles. Los Angeles não era nada e, de repente, o centro da indústria disco acabou sendo a Califórnia. São Francisco já tinha uma tradição libertária que ficou mais forte pelo fato dos beats mudarem pra lá. A contracultura nasceu ali para criar uma subcultura baseada nos signos visuais e musicais do psicodelismo. Lógico que tinha em Nova York o East Village, que era muito contestador, cena de vanguarda. Tinha o Meio-Oeste... Na verdade, a coisa começou a se pulverizar. Mas o que deu o petardo inicial veio naturalmente da Califórnia, da cena de São Francisco.

Acho interessante que no livro você pontua elementos dissonantes da contracultura hippie, como o Velvet Underground e o próprio MC5.
O Velvet Underground era mais ligado ao universo de vanguarda de Nova York, uma coisa muito niilista. Você pode estabelecer as diferenças até pelas drogas que eles consumiam. Na Califórnia eram drogas lisérgicas, alucinógenas, que deixavam a pessoa meio prostrada. E em Nova York aquele pique do speed, da anfetamina que deixavam a pessoa completamente ligada. É uma redução, uma simplificação, evidentemente, mas que traduz um pouco do universo cultural desses dois polos. E Detroit era uma cidade de tradição operária, centro da indústria automotiva. Detroit teve um fluxo migratório de negros também por causa dessas frentes de trabalho que se abriam. Então, o que floresceu em Detroit foi uma coisa completamente diferente das outras, que era um rock proletário. Os meninos do MC5 seriam trabalhadores de fábrica se não fossem músicos. E eles se associaram com John Sinclair, que era um pensador intelectual ligado aos beats, um cara de tradição maoista que tinha exatamente essa visão de arregimentação das massas através das artes, da filosofia, da literatura. Então foi um casamento de interesses. Hoje isso é mais difícil de fazer, mas é possível radiografar uma cena por esse status sociopolítico de cada lugar e como as bandas acabam refletindo o ambiente geral das cidades de onde elas saíram.

MC5: rock proletário

A contracultura dos anos 60 teve uma relação de dicotomia entre a rebeldia e o mercado. Na indústria cultural, sabe-se que a rebeldia vende bem. Dá pra falar que a contracultura falhou ao ser cooptada pelo mercado?
Acho que é meio inevitável. Se você considerar o que era antes a indústria de discos nos Estados Unidos, o que era o mercado popular de venda de discos... De repente você tem uma interferência nesse processo que é a chegada de uma geração nova, que estava alinhada a valores muito mais libertários. Era uma geração com um pensamento muito mais crítico, que havia frequentado a universidade, que teve acesso a filmes, livros e tal e de repente eles carregam essa mensagem libertária para dentro da indústria do disco. Para a indústria do disco foi ótimo o advento do rock, pois começou a vender como nunca vendeu. Então existe realmente essa contradição de um movimento que nasce no underground em São Francisco e de repente a indústria coopta naturalmente aquilo e cumpre-se a trajetória tradicional, que é do underground para o mainstream. Você pode qualificar isso como uma coisa positiva ou negativa? Eu não sei, porque a quantidade de vidas que foi afetada pelo fato de ter a indústria de discos impulsionando essa música, enquanto ela erguia essa montanha de dinheiro e consolidava corporações de discos e estrangulava a música por outro lado... É um negócio sem solução à vista. É um aspecto fascinante, que é muito peculiar ao rock porque este é um problema que não tem no cinema underground, não tem na literatura. Então passa muito por aí. Em algum momento, o ideal sucumbe à lógica corporativa. Isso fica muito claro nos anos 60. É inevitável. Aconteceu o mesmo com todos os movimentos depois e eles só tiveram o alcance que tiveram por causa disso, infelizmente ou felizmente.

É possível dissociar a contracultura dos anos 60 do rock?
Eu acho muito difícil, quase impossível, porque eles (os grupos de rock) foram responsáveis por propagar essa mensagem para fora do gueto. Ela talvez tivesse tido um alcance como teve nos anos 50 com os beats, por exemplo. Eles (os beats) tiveram uma aceitação mercadológica muito além do que a literatura seria capaz de proporcionar, mas nunca tiveram o efeito catalisador, por exemplo, de montar um festival com 500 mil pessoas. Isso só a música consegue por causa do mercado. Beatles, Bob Dylan conseguiram traficar para dentro do sistema as mensagens mais libertárias, um jeito diferente de você ver a Igreja, o Estado... As pessoas absorveram essa mensagem e isso de alguma maneira transformou. Para mim, não tem como dissociar a música da contracultura. É um componente fundamental e indissociável.

Em “O Som da Revolução”, ao contrário da visão idealizada predominante, você apresenta uma versão muito diferente do festival de Woodstock. Aquele que é fã de Woodstock dirá que você traz uma visão pessimista.
Eu tinha essa concepção anterior do festival. Mas quando você desce na realidade, percebe que a história não é tão edulcorada. Foi um festival que, ao mesmo tempo em que foi uma declaração da força de uma subcultura que ali conseguiu reunir 500 mil pessoas, também era uma demonstração de como o mercado ficou massificado. O festival não teve nenhum caráter beneficente, nem foi para protestar contra a Guerra do Vietnã, não foi nada disso. Pessoas que gostavam muito de música fizeram um festival independente para ganhar dinheiro. E as primeiras pessoas que ganharam dinheiro com Woodstock foram as corporações, a Time-Warner que comprou os direitos do filme. Quando os meninos que organizaram o festival ainda estavam respondendo pilhas de processos, o pessoal das grandes gravadoras já estava ganhando dinheiro, entendeu? Então, Woodstock não deixou de ser uma cooptação dos ideais sessentistas para transformar em um produto vendável, assimilável para um número grande de pessoas. Há os dois lados. Uma pessoa no interior da Bahia que foi ver o documentário de Woodstock falou “Porra! O que é isso?! Quer dizer que você pode levar uma vida assim, não preciso levar desse jeito que tô levando...”. Então são os dois lados. Eu procuro não idealizar. A minha tarefa ao construir essa história é principalmente não criar mitos. É tratar as pessoas como os personagens que elas são e não como mitos.

Hell's Angels espancam o público no Festival de Altamont, em 1969

Dentro da contracultura dos anos 60, as drogas tiveram um papel fundamental. O uso disseminado delas foi um fator importante para a decadência do movimento? Penso que Woodstock foi o fim do auge da bebedeira e que o que veio dali em diante foi a ressaca.
É verdade. Rock Scully, que foi roadie do Grateful Dead, falava que Woodstock e Altamont eram dois lados da mesma moeda, a massificação da boêmia. Não dá para negar o papel que a droga teve para o impulso criativo desses artistas. Toda a linguagem psicodélica deriva exatamente de tentar recriar musicalmente esses estados alterados de percepção. Mas é bom sempre frisar que os grandes artistas da época, todos sobreviveram à droga e a droga sozinha não fabricou nenhum grande artista. Eu acho que foi uma etapa criativa na trajetória dessas pessoas, é uma etapa que eles passaram e que rendeu frutos fantásticos. Mas a droga sozinha não fabricou artista nenhum.

A contracultura seguiu adiante depois da década de 60. Tivemos o punk, a disco music, o grunge. Hoje, onde é possível enxergar a contracultura?
Acho que ficou pulverizada. A gente tende a achar que não está acontecendo nada. Quando eu estava na faculdade nos anos 80 também achava que não estava acontecendo nada e hoje as pessoas tratam como se aquela fosse uma época de ouro. É difícil ter uma perspectiva enquanto você está vivendo. Acho que grande parte da rebeldia se pulverizou e migrou para outras fontes. O rock definitivamente deixou de ter o papel de interlocutor privilegiado desses movimentos que estão acontecendo. Mas a resistência à cultura principal, à cultura dominante, é uma coisa que vem desde a Grécia e não vai acabar agora. Vai ter gente no ciberespaço, nas redes sociais que vai montar algum tipo de resistência. Tenho certeza que daqui a 30 anos as pessoas vão lembrar das redes sociais, de como a gente conseguia mobilizar todo mundo, fazer as pessoas acreditarem e ir para rua. Definitivamente, as coisas estão muito mais pulverizadas. O mundo ficou um lugar muito menor com muitos atores no processo. Acho até que está mais fácil conjurar pensamentos semelhantes porque há uma rede interconectada com pessoas que conseguem se comunicar com muito mais facilidade. A resistência continua sempre.

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