Escritor Carlos Eduardo de Magalhães na Unioeste/MCRondon |
Marechal Cândido Rondon é uma das 21 cidades paranaenses onde está sendo realizada de 16 a 21 de setembro a 32ª Semana Literária do Sesc. Palestras com escritores, oficinas, mostras e feira de livros são parte da programação.
Ontem (18), no Tribunal do Júri da Unioeste, aconteceu a palestra “A força do escritor”, com os autores Veronica Stigger e Carlos Eduardo de Magalhães. A proposta era debater os seguintes tópicos:
“Que tipo de transformação social a literatura é capaz de empreender num país como o Brasil? Vamos discutir de que maneira se dá a interferência da ficção no dia a dia das pessoas, no cotidiano social. É possível falar em potência social das ficções?”.
Num espaço com capacidade para centenas de pessoas, um público de poucas dezenas de rondonenses compareceu. Uma cena digna do tema geral da Semana Literária deste ano: “Cadê o Leitor?”.
Deixando a ironia de lado e voltando para o assunto da palestra de ontem, reproduzo abaixo as falas do escritor Carlos Eduardo de Magalhães, que se dispôs a discutir mais teoricamente o tema, a partir de um texto escrito por ele com o título “Apontamentos sobre literatura”, publicado em 2006.
Abaixo, seguem trechos da introdução de sua fala, depois a leitura do texto citado, entremeado pelos comentário do autor e, por fim, as respostas para alguns dos questionamentos do público. Há afirmações polêmicas a respeito da relação entre escritor e leitor, arte e entretenimento e critérios que definem um bom livro e sua consequente repercussão na sociedade.
(*) O escritor Carlos Eduardo de Magalhães nasceu em São Paulo, em 1967. Tem nove livros publicados, dentre os quais Mera fotografia (Rocco, 1998), Os jacarés (CosacNaify, 2001), Dora (Ateliê, 2005) e Trova (Grua, 2013). Pitanga (Grua, 2008) foi lançado no Uruguai em 2013. O autor esteve como escritor convidado em residências nos EUA e na Índia. É formado em administração de empresas pela FGV-SP e dirige a editora Grua Livros.
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INTRODUÇÃO DA PALESTRA
“Escritor não tem função social. O compromisso dele é com a literatura, com a obra dele, com as suas verdades, com seus ressentimentos, com a sua história. A gente não sabe de nenhum movimento social que foi consequência de uma obra literária. Temos várias obras literárias que podiam instigar isso. No caso brasileiro, Vidas secas; Morte e vida severina, que são obras que instigam, mas fazem uma coisa a longo prazo. Essas obras vão ser estudadas, aí entram na tradição e muito tempo depois passam a ser incorporadas e fazem uma modificação aos poucos.”
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LEITURA DO TEXTO Apontamentos sobre literatura COM OS COMENTÁRIOS (em itálico)
A prosa literária se utiliza de duas ferramentas para existir, o enredo e a palavra. Anterior às duas vem a ideia, que as justifica e legitima. Sobre a ideia: ela é o mais e o menos importante. É dela que o livro nasce, mas ela deve se perder na linguagem e história. Deve ser como o princípio ativo dos remédios homeopáticos. Diluídos ao extremo até que reste um nada, ou, segundo os mais exagerados, apenas a memória daquele princípio ativo. Bom mesmo é que o escritor, quando acabe o trabalho, nem se lembre mais dela. E ela, dessa maneira escondida, diluída, agirá sobre o leitor. Uma ideia escancarada não é literatura, é panfleto, por melhor que ela seja.
“Isso aqui eu quis dizer que tem inúmeros livros que tentaram fazer esses movimentos sociais, mas são livros que a gente nem sabe quais são. Eles acabam se transformando numa literatura muito fraca. Enfim, eles se perdem.”
A ideia é a alma do livro, é através do seu corpo físico, a palavra, que o leitor poderá enxergá-la. Ou não. Normalmente o que acontece é o leitor enxergar coisas que para ele façam sentido naquele momento. Por isso duas leituras nunca são iguais, ainda que feitas pela mesma pessoa. Existem também os fundamentos anteriores à primeira página escrita, e posteriores à ideia do livro. Antes de começá-lo, decisões são tomadas. A primeira, o tamanho. Dessa definição sai o ritmo, a profundidade, a velocidade de impacto. Um conto deve ter alta velocidade de impacto, dizer logo a que veio. Um romance deve ter velocidade controlada, uma sintonia fina no pé do acelerador.
O sem-número de contos que um romance contém são os centros de atenção nessa viagem, que tem seu ponto final em alguma estação desconhecida. No prólogo de Doze contos peregrinos, Gabriel García Márquez nos diz que se deve também saber algo sobre a estrutura que se vai usar e sobre algum personagem, que servirá de referência para outros personagens, ainda que esse primeiro um perca a força na construção da história.
“Isso é bem comum. Quando você faz uma narrativa longa, tem que saber de onde sai e onde vai dar. É como se você fosse atravessar um longo rio a nado. Você está vendo a outra margem, mas via de regra nunca vai chegar lá. Vai chegar um pouco pra direita, um pouco pra esquerda. E os personagens também acabam se construindo no meio, o que é bem comum de acontecer.”
Pois se trata mesmo de uma construção. A estrutura são alicerces nos quais o livro se apoiará. Escolhe-se o tipo, ou os tipos, de narrador, como o tempo se passa, a linguagem a ser usada, entre outros parafusos e sacos de cimento.
“O tipo de narrador é determinante para uma história. Eu gosto de narrador em terceira pessoa. Quase todos os meus trabalhos são narradores de terceira pessoa.”
E um projeto elétrico consistente, que dimensione a rede para toda a carga de energia que iluminará o escritor, seus dedos a percorrer um caminho que ele desconhece, e que não raro o surpreenderá. O enredo, a história, o fundo literário, é a gênese da prosa literária. A palavra escrita, a linguagem, a forma literária, é seu meio de existência. Depois da ideia perder-se, a história é de importância fundamental. Se a palavra elaborada é o combustível, a história é o motor que dá sentido à engenhoca toda. Escrever bem é pré-requisito. Uma bula de remédio, um artigo de jornal, uma peça publicitária engraçadinha devem ser bem escritas, e os três não são literatura. Bem sei que como contar uma história é tão importante quanto o que contar, ou a história em si.
E existem tantos exemplos disso, mas fiquemos só em William Faulkner e Guimarães Rosa. Mas é necessário que haja uma história, e uma história boa. Faulkner e Rosa, outra vez. A técnica pela técnica, tão apreciada por alguns, me parece estéril, como ser muito bom em fazer embaixadinha. Vira só curiosidade ou referência, ou diverte o público nos intervalos dos jogos, quando os jogadores de futebol estão nos vestiários recebendo instrução do técnico. Se a embaixadinha existe, deve estar no meio de uma jogada, dar sentido a ela, ser tão genial que dê sentido à própria partida. Por outro lado, a linguagem literária aperfeiçoa a língua, a palavra escrita.
“Tem vários exemplos de línguas que foram fundadas pela palavra escrita. O italiano, por exemplo... A Divina Comédia foi escrita com o dialeto da Toscana e aí firmou o italiano. Dom Quixote no dialeto de Castilha e firmou o espanhol. Camões, a mesma coisa. Grandes livros acabaram determinando essas línguas.”
Talvez, mais correto que aperfeiçoa, seja atualiza, traz a palavra escrita para o mundo contemporâneo a ela, sendo seu reflexo. Hoje, no mundo fragmentado e veloz, um mundo sem tempo e com infinitos estímulos, a palavra é nervosa, seca, precisa. Contos breves, minicontos, frases curtas apareceram refletindo e definindo esse mundo sem metáforas. Às vezes nos esquecemos que literatura é, sobretudo, entretenimento. Não nos permitimos dizê-lo. Mas é.
“Aqui eu quero fazer um parêntesis. Eu acho que arte é entretenimento, mas entretenimento não é arte. Arte é um entretenimento, ainda que seja da alma. Quando você passa uma tarde em um museu, você sai de uma maneira entretido com aquilo, é uma coisa sofisticada. Mas, um filme de ação, uma coisa assim não é pensada para ser arte. São duas coisas diferentes.”
E quanto mais elaborada a palavra, quanto mais escondida a ideia, quanto mais rica a história, mais sofisticado o entretenimento. Um bom livro nos incomoda e nos inquieta, é o veículo em que somos passageiros solitários em uma viagem, por vezes árida, com destino a nós mesmos. Um bom livro carrega-se a vida inteira.
Um bom livro define uma geração. Como reconhecer o grande livro? Você o reconhece, esteja certo. Uma dica? Ele é aquele te derruba. E, derrubado, você começa a sentir o chão que te sustenta. Por fim, não nos deixemos enganar, não nos esqueçamos, sob pena da construção toda desmoronar feito um arranha-céu construído com cimento ralo e areia da praia – saibamos todos que o principal objetivo da literatura não é nem a história, nem a palavra. Elas são meios, o fim é o homem. A literatura talvez seja a maneira mais formidável que o homem descobriu para investigar-se, iluminar, ainda que precariamente, as sombras do seu ser.
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DEBATE COM A PLATEIA
- Sobre a relação do escritor com o leitor e a crítica literária:
A minha relação com o leitor é nenhuma. O primeiro leitor que você tem que agradar é você mesmo. É muito claro que o tipo de trabalho que você escreve, repete muito o tipo de leitor que você é. Eu acho que a relação não é nenhuma porque se você vai escrever para o leitor, você não sabe o que ele quer. Segundo, o leitor pode escolher milhares de livros que já foram publicados dez anos para atrás, que são livros excelentes. Então como eu vou escrever uma coisa para esse leitor? Então a relação que eu tenho é nenhuma. Quando eu escrevo, primeiramente tenho que gostar do que eu escrevo. Você pode escrever uma coisa para o leitor e não existe nenhuma garantia que o leitor vai gostar daquilo. Uma figura importante é o editor, que vai fazer esse filtro. Vou dar um exemplo. No meu primeiro livro de contos, mandei para uma editora que não existe mais que é a Pauliceia. Eram 17 textos e o editor disse: “esses três são bons, esses 13 você reescreve e esse um você joga fora”.
- Sobre a aparente contradição entre as afirmações de que “um escritor não tem função social” e que “um livro pode definir uma geração”:
Eu não acredito em livro escrito como uma função social. Acho que o livro que define uma geração não foi escrito para definir uma geração. Ele define uma geração porque o escritor é sobre tudo uma antena. Grandes escritores conseguem captar uma realidade antes que essa realidade se estabeleça. Kafka em O Processo, A Metamorfose e mesmo nos contos está falando de um mundo que se estabeleceu 20 anos depois. Esses livros definiram uma geração, mas duvido que ele escreveu pensando nisso. Quando o escritor escreve não está pensando em mudar o mundo. O livro muda, principalmente, o indivíduo que, quando lê, sai uma pessoa melhor. O livro muda o indivíduo e esse indivíduo vai mudar o mundo.
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