sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Entrevista exclusiva com Leonardo Boff


Edição de dezembro da revista Amigos da Natureza está circulando e nela o leitor encontra uma entrevista exclusiva com o filósofo, teólogo e escritor Leonardo Boff. Conversei com Leonardo Boff há cerca de um mês, em Foz do Iguaçu, depois de encontrá-lo por acaso no saguão do hotel onde estava sendo realizado o Cultivando Água Boa + 8, da Itaipu Binacional. O resultado da conversa você lê nas páginas da Amigos da Natureza ou aqui no blog, logo aí embaixo. Vale a pena conferir o que pensa um dos ambientalistas mais respeitados em todo o mundo...

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“Estamos diante de uma grande crise de civilização”

Conhecido e respeitado no Brasil e em diversos países pelo seu trabalho como professor, escritor, teólogo e filósodo, Leonardo Boff também é uma autoridade quando o assunto é ecologia. Natural de Concórdia (SC), onde nasceu em 1938, a vida de Leonardo Boff sempre foi marcada pela luta em favor dos direitos humanos. E neste momento em que o mundo vive uma era de transição, em que uma mudança de atitude em relação ao meio ambiente se faz cada vez mais necessária, o pensamento de Leonardo Boff também têm sido uma referência. Autor de mais de 60 livros e agraciado em 2001 com o prêmio nobel alternativo em Estocolmo – entregue pela Right Livelihood Award – , Leonardo Boff concedeu a seguinte entrevista exclusiva para a revista Amigos da Natureza.

Vivemos um período de transformação. Como o senhor percebe esse momento histórico de mudanças de paradigmas, em que o meio ambiente começa a ter um espaço cada vez maior?
Eu creio que há uma convicção que cresce cada vez mais no mundo de que assim como está não podemos continuar. Aquelas ideias que produziram a crise não são aquelas que vão resolvê-la. Então, temos que ter novas ideias. Isso significa uma nova relação com a natureza, que não pode ser de depredação, mas de sinergia, de respeitar os ciclos dela. E também uma nova relação com a produção, que não deve ser orientada para a acumulação e o enriquecimento de alguns. Ela tem que ser a produção do suficiente para nós e todos os demais seres vivos, que também precisam da biosfera. E que isso se faça não no espírito da competição, do mercado e na lógica da economia. Mas, no espírito da cooperação, que é a lógica da natureza, em que um ajuda o outro e todos coexistem. Temos que pensar nas gerações futuras para que nossos filhos e netos lá na frente, olhando para trás, não nos amaldiçoem porque entregamos a eles uma natureza devastada e uma terra sacrificada. Essas ideias novas têm que se transformar em hábitos, em práticas diferentes. É isso que transforma a realidade.

O século passado foi marcado pela intensificação da industrialização, que levou a essa crise que estamos vivendo agora. Para o século XXI, que tipo de sociedade pode ser construída?
Será uma sociedade que vai descobrir a casa comum, a Terra, que é um planeta pequeno, com recursos escassos e super povoado. As pessoas vão se descobrir como uma espécie de família humana, que tem que conviver junto e por isso precisa gerenciar esses recursos para que todos tenham o suficiente para viver. Uma sociedade que será uma democracia sem fim, ou seja, todos vão participar, conforme suas tradições, seus costumes, trazendo seus valores diferentes, mas tendo como convergência que nós devemos viver uma paz entre nós e preservar essa casa comum, que está muito devastada. Devemos sarar as feridas passadas e impedir as feridas futuras. Isso se faz pela ética do cuidado. O cuidado tem essa característica, ele fecha feridas e impede novas. Eu não posso praticar ações que tenham consequências destrutivas para a natureza e os outros. Será uma sociedade mais simples, que vai aprender a viver com menos e viverá melhor, com um profundo respeito por todos os seres, que têm direito de estarem conosco. Isso é um pouco sonho, mas não podemos deixar que ele fique sendo apenas um sonho. Tem que começar a realizar em cada lugar, começando pela gente mesmo. A soma dessas experiências vai permitir o salto para essa nova sociedade.

O senhor entende que as novas gerações estão tendo uma preocupação maior com a natureza?
Por todos os lados do mundo estão se fazendo experiências alternativas. Elas nascem não só da boa vontade, mas também do desespero das pessoas que vêem suas safras perdidas, as terras sendo desertificadas, a água faltando cada vez mais, as florestas desaparecendo. Então, as pessoas estão se dando conta que as condições básicas da vida são afetadas. E aí começam as novas iniciativas para sobreviver. Agora, elas ainda não conseguiram se articular para constituir uma força, um projeto. O Fórum Social Mundial é o lugar onde elas se tornam visíveis, se encontram e contam as próprias experiências. Mas isso ainda não se transformou em um discurso político para fazer frente ao discurso dominante. Mas, quanto mais cresce a crise, mais cresce o pensamento e a urgência da mudança para construir um núcleo de valores mínimos a respeito do cuidado com a vida, da responsabilidade, da compaixão com quem sofre. Ao redor de um bloco de valores vai se criar um consenso, no qual as pessoas vão se unir e impor mudanças fundamentais. Cada um tem que ser ator porque a crise é global. Cada um pode dar um pouco da sua colaboração para o benefício coletivo.

Que exemplo o Brasil pode dar para o resto do mundo com relação às questões ambientais?
O Brasil vive uma grande contradição. Nele se revelam todas as misérias do mundo: pobreza, injustiça, etc. Simultaneamente, nele se revelam todos os fatores que podem significar um futuro bom para a humanidade. Abundância de biodiversidade, florestas, de água, de energia, o maior número de terras férteis do planeta. O Brasil vive as duas coisas. É um pouco a tragédia e um pouco a esperança do mundo. Eu desejo o que renomado Ignácio Sachs deseja: que o Brasil seja uma pequena antecipação daquele mundo futuro que ele chama de A Terra da Boa Esperança. Ele coloca no centro a vida, a humanidade e a Terra. O Brasil tem condições geográficas e ecológicas para fazer esse pequeno ensaio. Depende de nós vergar os poderes públicos para uma consciência nova e fortalecer as práticas que estão nos movimentos sociais que vão nessa linha.

Em nenhuma eleição para presidente no Brasil se falou tanto em meio ambiente como em 2010. A classe política está mesmo mais preocupada em promover o desenvolvimento sustentável?
Existe o alarme ecológico, do aquecimento global. Os céticos estão se retirando cada vez mais, rendidos pelos eventos extremos que ocorrem no mundo. Por exemplo, seca no Norte do país, o Sul com ventos e tempestades que assolam as plantações, derrubam casas. Grandes secas na África, enchentes terríveis na Ásia. Esses eventos mostram que a Terra perdeu o equilíbrio e está buscando ele de volta. Esse alarme ecológico está entrando lentamente na consciência coletiva porque nós não podemos esperar. Uma coisa é dar-se conta do problema, outra é transformar isso em políticas que façam adaptações para esta situação nova, que diminuam os efeitos desastrosos que estão acontecendo por todas as partes. E a isso nós não chegamos. É um desafio do governo de Dilma Rousseff junto ao PAC incorporar o elemento ecológico. Isso não se trata só do ambiental, mas também do social, de incluir a população. São novos valores e conceitos que precisam ser incluídos. E vendo a totalidade, não só o Brasil. O Brasil, como uma província privilegiada do planeta, tem uma missão importante para o equilíbrio global.

As ONGs e movimentos sociais estão ocupando um papel importante no debate público e político. O caminho para promover as mudanças necessárias passa por eles?
A minha tese é que dos governos não podemos esperar nada substantivo porque eles são dominados pelos interesses econômicos dos grandes capitais, onde procuram um equilíbrio para sobreviver. Acredito na sociedade civil mundial, que se expressa pelos movimentos sociais, pelas mulheres, pelo MST, pelas ONGs. A humanidade tem que tomar em suas mãos o seu destino e não delega-lo a grupos de poder. Chegou o momento da nova cidadania planetária. Com essa força articulada dos movimentos sociais, pressionar os governos para que as grandes questões não sejam resolvidas no parlamento, mas no diálogo com a sociedade, em uma democracia participativa, responsável, com os representantes em contínuo diálogo com suas bases para poderem estar em sintonia com esse movimento novo da história. O que vai triunfar é aquilo que é o grande sonho das culturas andinas, que é a democracia comunitária. As comunidades se organizam, estabelecem formas de produção, equilíbrio e articulação.

O senhor é um otimista ou pessimista quanto ao futuro?
Eu parto da tese que a vida é mais forte que a morte. Na atual realidade, nós estamos diante de uma tragédia cujo fim é fatal e ruim. Estamos diante de uma grande crise de civilização. A crise obriga mudanças, como uma pessoa que passa por crises muda, troca de hábitos, redefine a vida. Estamos no coração de uma grande crise e vamos sair dela, na direção de uma humanidade melhor. Não porque ela queira simplesmente, mas porque não vê alternativa. Ou ela muda ou ela morre. E muda no sentido de recolher tudo de bom que a tecnociência criou, das distintas culturas e fazer um novo ensaio civilizatório com muito mais simplicidade, mais sintonia com a natureza, mais solidariedade. Isso é possível e o futuro da humanidade vai nessa direção.

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CRÉDITO DA FOTO: Cristiano Viteck