segunda-feira, 29 de julho de 2013

Arte, inimiga do povo



Como o jazz, estilo musical com origens nas comunidades negras e nos puteiros de Nova Orleans (EUA) no final do século XIX e início do XX, se transformou de uma manifestação popular em arte erudita algumas décadas depois? 

É pegando essa pergunta como gancho que o professor Roger L. Taylor, da Universidade de Sussex (Inglaterra), publicou em 1978 o livro “Arte, inimiga do povo”. A obra ganhou edição brasileira em 2005 pela Editora Conrad.

Logo nas primeiras das cerca de 200 páginas, Taylor deixa claro que o livro se presta a duas coisas. Uma delas é ser uma publicação não apenas para acadêmicos, mas para leiteiros, balconistas, lixeiros, carteiros, ou seja, qualquer pessoa que se interesse pelo assunto. Mas, embora prometa um texto “fácil”, nem sempre o autor cumpre a promessa, em especial no primeiro capítulo onde discute metodologicamente os conceitos de “filosofia” e “arte” a que ele se refere no livro. Mas vale o desafio.

Já sobre o segundo objetivo, Taylor dispara:

“Para firmar minha posição da forma mais desafiadora, declaro que a arte e a filosofia são inimigas das massas. Portanto, não é minha intenção levá-las ao povo, e sim armá-lo contra elas. É por esse motivo que eu gostaria que esse trabalho fosse lido. Do jeito que as coisas estão, as massas, com uma certa vergonha, ignoram a arte e a filosofia. Quero que a população tome consciência dessas atividades e, a partir disso, assuma uma atitude de desprezo e resistência a elas.”

Conceito de arte era inexistente na Idade Média

Segundo o escritor, o conceito de arte como o assimilamos hoje era inexistente até o fim da Idade Média, quando fazer música, escrever ou pintar era uma atividade tão mundana quanto produzir um sapato ou construir uma charrete. Taylor defende que isso mudou entre os séculos XVII e XVIII na Europa, quando a aristocracia começou a entrar em crise com a ascensão da burguesia ao topo da esfera social. 

Através da supervalorização de seus costumes e símbolos, afirma o autor que nobreza criou inventou o  conceito de arte: “Dessa forma, aquilo que distinguia a classe aristocrática era mantido como algo que possuía status. Entrar nessa forma de vida era se envolver em uma atividade elevada e superior (...), a forma mais elevada e absoluta de aspiração social e individual”.

Quando a burguesia enfim se tornou a classe dominante, ela se apropriou da ideia de arte como representação do status de sua própria classe. Porém, diferente da aristocracia, que pensava a arte como reflexo ou representação da estrutura social estabelecida, Taylor afirma que a burguesia passou a considerar a beleza artística a partir “da presença ou da ausência de uma resposta psicológica, frequentemente identificada nas teorias como prazer" em relação às atividades burguesas como pintura e literatura, que não eram consideradas artes pelos padrões aristocráticos.

Essa discussão sobre a origem da arte feita pelo autor – um tanto quanto cabeluda e longe de ser uma unanimidade – foi necessária para que ele pudesse defender que a origem do conceito moderno de arte foi forjado ideologicamente. Simplificando a questão, o problema nisso, sugere Taylor, está no fato de que o aquilo que vem sendo considerado arte ou não e os critérios para essa definição é uma escolha da classe burguesa com o objetivo de reforçar e valorizar a sua forma de interpretar e organizar a sociedade. 

Insiste o professor que, embora ao longo dos últimos três séculos tenha sido criado todo um repertório, todo um “jogo de palavras” para defender a arte erudita como superior à arte popular, tudo não passa de uma farsa, do que vem a conclusão expressa no título do livro: a arte é inimiga do povo.

“A implicação mais óbvia dessa análise sugerida”, explica o autor, “é que, para aqueles que ficam de fora da vida ‘cultural’ da sociedade, não é preciso considerá-la um ideal elevado do qual se vejam excluídos por falta de talento, inteligência ou sensibilidade, tampouco se sentirem envergonhados, culpados ou arredios por causa de sua ignorância sobre o tema. Não existe ideal elevado, existe apenas o estilo de vida daqueles grupos sociais que detêm os maiores recursos financeiros dentro da sociedade”.

Então, como é que o jazz, música origem popular, se transformou em alta cultura? Inicialmente é preciso ter em conta que a cultura é dinâmica. Ela não é um monumento de pedra que resiste à passagem do tempo. A cultura está em constante transformação e circula em jogo de trocas tanto entre as classes mais abastadas como as mais populares, sendo permanentemente reconstruída. 

No processo de elevação do jazz ao nível de cultura erudita, Taylor aponta que houve um processo de desmonte do estilo musical. Das casas de moral duvidosa onde surgiu, elementos dessa música foram sendo readaptados para os grandes salões que os ricos freqüentavam. Tiraram-se os elementos mais subversivos e “dourou-se a pílula” para o gosto das elites. Essencialmente em sua origem uma música feita por negros, aos poucos músicos brancos passaram a tocá-lo nos grandes bailes animados por orquestras. Proibida em rádios, com o “clareamento” dos músicos, muitas rádios passaram a executá-las. “Quando a música começou a absorver essas formas, perdeu sua base popular”, lamenta o a autor.

Roger L. Taylor passa longe da discussão sobre a contracultura

A discussão sobre a arte como inimiga do povo é interessante. Porém, a percepção de quem lê o livro quase 35 anos após a sua publicação é que “Arte, inimiga do povo” deixou muitas lacunas em aberto, apesar dos esforços do autor em preenchê-las. Pouco o autor discute sobre as teorias da cultura de massa que tiveram ampla repercussão a partir do escritor de Theodor Adorno. 

Também seria o caso de Taylor ter dado mais atenção aos vários movimentos de contracultura surgidos ao longo do século XX e que batiam de frente com a arte erudita, podendo ser citados como exemplos os beatniks, os situacionistas, os hippies, os punks entre tantos outros. Inclusive, para quem se interessar, uma leitura que aprofunda estes e outros movimentos contraculturais é “Assalto à Cultura”, de Stewart Home, também publicado no Brasil pela Editora Conrad.

Mas, vale a leitura. “Arte, inimiga do povo” é um livro altamente recomendável por nos levar a pensar a arte não de modo tão ingênuo, mas sim como um amplo campo de lutas sociais no qual o engodo artístico é uma arma poderosa.

domingo, 21 de julho de 2013

"Eu falo música": a história fotográfica dos Ramones



Hey ho, let’s go!!! Saiu a edição em português de “Eu Falo Música: Ramones” (I Speak Music: Ramones), livro de autoria do norte-americano George Dubose, fotógrafo oficial dos Ramones.

Sabe aquela capa lindona do “Too Tough To Die”? Foi ele quem fez, assim como a de “Subterranean Jungle”, “Halfway to Sanity”, “Ramonesmania”, “Mondo Bizarro”... Enfim, muito do que os Ramones fizeram de 1983 até o fim da banda em 1996 passou pelas lentes do fotógrafo George Dubose.


Primeira sessão de DuBose com os Ramones, para a capa de "Subterranean Jungle" em 1983

A edição em português teve uma colaboração gigantesca do meu brother internético Leonardo Drumond (é flamenguista, mas é fã de Ramones, e que alivia um pouco a barra dele), que foi quem traduziu a bagaça... E por causa dele eu acabei entrando de gaiato no projeto como revisor...

Bom, no livro Dubose fala da sua relação com a banda e obviamente como foram feitas as sessões que resultaram em algumas das capas de álbuns clássicos dos Ramones e outras imagens de divulgação. Obviamente, tudo recheado com muitas fotos inéditas da banda mais legal do mundo.

O fueda é que por enquanto o livro está à venda apenas no site da Amazon

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Nas entranhas do grunge



As histórias mais conhecidas e engraçadas, assim como as mais remotas e deprimentes sobre a cena musical de Seattle (EUA) – que ganhou fama no início dos anos 1990 – estão reunidas no livro “Everybody Loves Our Town: an oral history of grunge” [Todo Mundo Ama Nossa Cidade: uma história oral do grunge], do jornalista estadunidense Mark Yarm. Editado pela Three Rivers Press, a publicação recebeu críticas elogiosas, sendo inclusive escolhida como “o melhor livro do ano” pela revista Time em 2011, o que não é pouca coisa.

O grunge pode ser considerado a última grande cena musical do rock, levada aos quatro cantos do mundo por nomes como Nirvana, Pearl Jam, Alice in Chains e Soundgarden, apenas citando os mais famosos. E o que o jornalista Mark Yarm se propôs a fazer e o fez muito bem em seu livro foi tentar explicar como grupos acostumados a tocar em festas da vizinhança ou em pequenos clubes para algumas dezenas de pessoas se tornaram rock stars da noite para o dia e promoveram uma considerável revolução cultural não só na música, mas também na moda.

“Everybody Loves Our Town” segue o mesmo método de outro livro obrigatório da história da música pop, o clássico “Mate-me por favor: uma história sem censura do punk”, escrito por Legs McNeil e Gillian McCain. Ou seja, toda a história é contada a partir de depoimentos de centenas de pessoas, sempre transcritas em discurso direto. Para seu livro, Mark Yarm realizou mais de 250 entrevistas incluindo tanto os personagens famosos como aqueles que não tiveram seu reconhecimento público, mas foram fundamentais para a origem e desenvolvimento do grunge: músicos, produtores, fotógrafos, jornalistas, executivos, empresários e quem mais tivesse algo de interessante para contar.

Jack Endino, o produtor que talvez mais tenha gravado bandas de Seattle da geração grunge, já nas primeiras páginas não esconde sua surpresa pelo fato da cidade ter se tornado por um breve tempo a Meca da música. “Ninguém pensava que houvesse a mínima chance de ter sucesso. As pessoas faziam discos pensando em agradar a si mesmas porque não havia ninguém mais para agradar, ninguém estava prestando atenção em Seattle. Era apenas um pequeno e isolado germe cultural”, define Endino.

Fazem parte dessa primeira geração nomes desconhecidos como Malfunkshun e Green River, que hoje são mais lembrados por terem em sua formação membros que anos mais tarde estariam em bandas famosas como Pearl Jam e Mudhoney.


Sub Pop

É muito provável que a cena musical de Seattle continuaria sendo um minúsculo “germe cultural” se não fosse por Bruce Pavitt e Jonathan Poneman, os fundadores do selo Sub Pop, que em 1988 começou a gravar as bandas da região. Como os próprios ironizaram no documentário “Hype!” (1996), quando começaram o selo, para atrair o interesse das bandas e do público fingiam que a Sub Pop era uma grande gravadora. Depois, com o sucesso do grunge, para manter o status de selo alternativo a ideia de Pavitt e Poneman era vender a imagem de que a Sub Pop não passava de uma empresa minúscula.

Sem grana para promover individualmente cada uma das bandas do selo, os donos da Sub Pop tiveram o insight de pagar uma viagem para o jornalista inglês Everett True conhecer a cena de Seattle. Por dias seguidos True foi generosamente abastecido pela Sub Pop com litros de álcool, entrevistou bandas e foi a shows estrategicamente agendados para parecer que Seattle tinha uma grande cena musical.

“Eu pensava em como era hilário que todo mundo mentia”, declara o jornalista no livro de Mark Yarm. O caso é que a matéria de Everett True, publicada na revista Melody Maker em março de 1989 com o título “SUB POP Seattle: rock city”, aguçou o interesse dos ingleses, que passaram a se interessar pelo que estava acontecendo em Seattle.

O “golpe” dos donos da Sub Pop havia dado certo. A ideia era simplesmente tentar reproduzir o que havia feito Jimi Hendrix duas décadas antes. Nascido em Seattle, o então desconhecido guitarrista mudou-se para a Inglaterra e lá construiu sua fama, para depois ver sua música novamente exportada aos Estados Unidos. E foi o mesmo que aconteceu com a Sub Pop e suas bandas: primeiro a fama na Europa, depois o reconhecimento do público americano.

Porém, não foi nenhum nome da Sub Pop que teve um primeiro grande sucesso. Isso coube ao Alice in Chains e sua música “Man in the Box”, presente no disco “Facelift”, de 1990. Nick Terzo, executivo da Columbia, gravadora da banda, resumiu a história de como o grunge “aconteceu” ao dizer que o Alice in Chains teve o trabalho de abrir inúmeras portas e que o Nirvana veio logo atrás.

Nirvana em outubro de 1991, logo após o lançamento de "Nevermind"

Efeito Nirvana

A partir do sucesso de “Nevermind”, o segundo álbum do Nirvana - lançado em setembro de 1991 pela gravadora Geffen Records, a história da cena musical de Seattle é bem conhecida. O grupo de Kurt Cobain derrubou Michael Jackson e Guns n’ Roses do topo da parada da Billboard. Outros grupos também alcançaram imenso sucesso e o rock alternativo, durante anos relegado a um pequeno público underground, virou a nova galinha de ouro para as gravadoras.

O sucesso afetou de modo diferente cada um da cena musical de Seattle. Conforme revelam os entrevistados em “Everybody Loves Our Town”, havia quem se esbaldava no estilo de vida “sexo, drogas e rock and roll” proporcionado pela fama repentina. Outros simplesmente não conseguiram segurar a onda. Ou pelo menos fingiam não gostar da nova condição de estrela do rock. No livro, o guitarrista Kim Thayil, do Soundgarden, comenta que a lógica dos artistas era, em muitos casos, “fingir que nós não queremos todo esse sucesso, mas que alguém está nos forçando a isso. Eu penso que todo mundo fez isso, incluindo membros da minha própria banda”.

Pearl Jam se tornou a banda grunge de maior sucesso

Overdose grunge

Aceitando bem ou não o sucesso (ou a falta dele, para a maioria), todos tiveram que lidar com a ressaca que se abateu sobre Seattle quando a moda grunge passou. Kurt Cobain não foi o primeiro e nem o último artista a ter um fim trágico. Antes dele outros já haviam morrido por overdose de drogas ou tiveram problemas sérios, especialmente com a heroína. E é a morte por overdose do vocalista do Alice in Chains, Layne Staley, em 2002, que praticamente encerra a era grunge.

Obviamente que muitos personagens dessa geração continuam por aí. Dave Grohl, ex-baterista do Nirvana, montou a super banda Foo Fighters. O Pearl Jam continua na ativa até hoje como um dos maiores nomes do rock atual. O Soundgarden voltou a existir e atualmente excursiona com um álbum novo. O Alice In Chains também, após mais de uma década parado, retomou a carreira com um novo vocalista e já lançou dois discos de inéditas desde 2009. Jack Endino não precisou mudar de profissão como ele temia na metade dos anos 1990 e ainda é um produtor bastante requisitado e respeitado. A gravadora Sub Pop, agora parceira da Warner Bros., comemora em 2013 seu 25º aniversário, ainda gravando e revelando artistas interessantes.

Mas o grunge como um movimento agora faz parte dos livros de história, sendo o melhor deles até agora “Everybody Loves Our Town”. Está tudo aqui nas 550 páginas do livro de Mark Yarm: as origens, as brigas, as loucuras, os excessos, os sucessos e fracassos. Tudo contado pelos grandes e pequenos personagens que tiveram o privilégio de estar no olho do furacão de uma era memorável do rock and roll.

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PS.: Mark Yarm e os fãs de rock ainda aguardam que alguma editora brasileira deixe de ser idiota e publique o livro no Brasil.

Entrevista com Mark Yarm aqui